João Cabral de Melo Neto (1920)
Morte e vida severina (Auto de Natal pernambucano) O meu nome é Severino, não tenho outro de piá. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos como mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino de Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites do Paraíba. Mais isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia como nome do Severino filhos de tantas Marias mulher de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na sina na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossa Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra" - A quem estais carregando, irmãos das almas, embrulhado nessa rede? dizei que eu saiba. - A um defunto de nada, irmãos das almas, que há muitas horas viaja á sua morada. - E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se chama ou se chamava? - Severino Lavrador, irmãos das almas, Severino Lavrador, mas já não lavra. - E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que começou vossa jornada? - Onde a caatinga é mais seca, irmãos das almas, onde uma terra que não dá nem planta brava. - E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida, ou foi matada? - Até que não foi morrida, irmãos das almas, esta foi morte matada, numa emboscada. - E o que guardava a emboscada, irmãos das almas, e com que foi que o mataram, com faca ou bala? - Este foi morto de bala, irmãos das almas, mais garantido é de bala, mais longe vara. - E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? - Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada. - E o que havia ele feito, irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? - Ter uns hectares de terra, irmãos das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. - Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas, que podia ele plantar na pedra avara? - Nos magros lábios de areis, irmãos das almas, dos intervalos das pedras, plantava palha. - E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada? - Tinha somente dez quadras, irmãos das almas, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea. - Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? - Queria mais espalhar-se irmãos das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. - E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda? - Mais campo tem para soltar, irmãos das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala. - É esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando, cemitérios esperando, - Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabe me dizer se o rio a esta altura dá vau? Sabe me dizer se é funda esta água grossa e carnal? - Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado. - Seu José, mestre carpina,
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