MANUEL BANDEIRA Eu vi um rosa - Uma rosa branca - Sozinha no galho. No galho? Sozinha No jardim, na rua. Sozinha no mundo. Em torno, no entanto, Ao sol de meio-dia, Toda a natureza Em formas e cores E sons esplendia. Tudo isso era excesso. A graça essencial, Mistério inefável - Sobrenatural - Da vida e do mundo, Estava ali na rosa Sozinha no galho. Sozinha no tempo. Tão pura e modesta, Tão perto do chão, Tão longe na glória, Da mística altura, Dir-se-ia que ouvisse Do arcanjo invisível As palavras santas De outra Anunciação. A CINZA DAS HORAS (1917) DESENCANTO Eu faço versos como quem chora De desalento de desencanto Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente Tristeza esparsa remorso vão Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre Sabor na boca. - Eu faço versos como quem morre. Teresópolis, 1912 CARNAVAL (1919) OS SAPOS Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: -"Meu pai foi à guerra!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi". O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos. O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio. Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A formas a forma. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas " Urra o sapo-boi: - "Meu pai foi rei" - "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - "A grande arte é como Lavor de joalheiro. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo Tudo quanto é vário, Canta no martelo." Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas: - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!". Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Verte a sombra imensa; Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio 1918 DEBUSSY Para cá, para lá Para cá, para lá Um novelozinho de linha Para cá, para lá Para cá, para lá Oscila no ar pela mão de uma criança (Vem e vai ) Que delicadamente e quase a adormecer o balança - Psio - Para cá, para lá Para cá e - O novelozinho caiu. O RITMO DISSOLUTO (1924) OS SINOS Sino de Belém, Sino da Paixão Sino de Belém, Sino da Paixão Sino do Bonfim! Sino do Bonfim! * Sino de Belém, pelos que inda vêm! Sino de Belém bate bem-bem-bem. Sino da Paixão, pelos que lá vão! Sino da Paixão bate bão-bão-bão. Sino do Bonfim, por quem chora assim? * Sino de Belém, que graça ele tem! Sino de Belém bate bem-bem-bem. Sino da Paixão - pela minha mãe! Sino da Paixão - pela minha irmã! Sino do Bonfim, que vai ser de mim? * Sino de Belém, como soa bem! Sino de Belém bate bem-bem-bem. Sino da Paixão Por meu pai? - Não! Não! Sino da Paixão bate bão-bão-bão. Sino do Bonfim, baterás por mim? * Sino de Belém, Sino da Paixão Sino da Paixão, pelo meu irmão Sino da Paixão, Sino do Bonfim Sino do Bonfim, ai de mim, por mim! * Sino de Belém, que graça ele tem! LIBERTINAGEM (1930) PNEUMATÓRAX Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três trinta e três trinta e três - Respire. . - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o [pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. POÉTICA Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente [protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário [o cunho vernáculo de um vocábulo Abaixo os purista Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si [mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as historias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar - Lá sou amigo do rei - Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. ESTRELA DA MANHÃ (1936) CANÇÃO DAS DUAS ÍNDIAS Entre estas Índias de leste E as Índias ocidentais Meu Deus que distância enorme Quantos Oceanos Pacíficos Quantos bancos de corais Quantas frias latitudes! Ilhas que a tormenta arrasa Que os terremotos subvertem Desoladas Marambaias Sirtes sereias Medéias Púbis a não poder mais Altos como a estrêla-d'alva Longínquos como Oceanias - Brancas, sobrenaturais - Oh inacessíveis praias! TREM DE FERRO Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isto maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força Oô Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho De ingázeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar! Oô Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá Oô Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra mata minha sede Oô Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente LIRA DOS CINQUENTANOS (1940) DESAFIO Não sou barqueiro de vela, Mas sou um bom remador: No lago de São lourenço Dei prova do meu valor! Remando contra a corrente, Ligeiro como a favor, Contra a neblina enganosa, Contra o vento zumbidor! Sou nortista destemido, Não gaucho roncador: No lago de São Lourenço Dei prova do meu valor! Uma só coisa faltava No meu barco remador: Ver assentado na popa O vulto do meu amor Mas isso era bom demais - Sorriso claro dos anjos, Graça de Nosso Senhor! 1938 BELO BELO (1948) BELO BELO Belo belo minha bela Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem tosse Nem obrigação de voto Quero quero Quero a solidão dos píncaros A água da fonte escondida A rosa que floresceu Sobre a escarpa inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco Quero quero Quero dar a volta ao mundo Só num navio a vela Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdá e Cusco Quero quero Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero. O BICHO Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quanto achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Rio, 27 de dezembro de 1947. OPUS 10 (1952) BOI MORTO Como em turvas águas de enchente, Me sinto a meio submergido Entre destroços do presente Dividido, subdividido, Onde rola, enorme, o boi morto, Boi morto, boi morto, boi morto. Árvores da paisagem calma, Convosco - altas, tão marginais! - Fica a alma, a atônita alma, Atônita para jamais. Que o corpo, esse vai como o boi morto, Boi morto, boi morto, boi morto. Boi morto, boi descomedido, Boi espantosamente, boi Morto, sem forma ou sentido Ou significado. O que foi Ninguém sabe. Agora é boi morto, Boi morto, boi morto, boi morto. ESTRELA DA TARDE (1963) ANTOLOGIA A vida Não vale a pena e a dor de ser vivida Os corpos se entendem mas as almas não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Vou-me embora p'ra Pasárgada! Aqui eu não sou feliz. Quero esquecer tudo: - A dor de ser homem Este anseio infinito e vão De possuir o que me possui. Quero descansar Ilumildemente pensando na vida e nas mulheres que amei Na vida inteira que podia ter sido e que não foi. Quero descansar. Morrer. Morrer de corpo e de alma. Completamente. (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de [partir.) Quando a Indesejada das gentes chegar Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. Setembro 1965. PONTEIOS A ONDA a onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda MAFUA DO MALUNGO ROSALINA Rosalina. Rosa ou Lina? Lina ou Linda? Flor ainda! Flor purpúrea, Mais singela Que Adozinda: Rosalina! Rosalinda! Manuel bandeira -1
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