continuação de MARGINÁLIA
--------------------------------------- Em todas as alusões que Lord Byron faz à sua paixão por Mary Chaworth, circula um sopro de ternura e de pureza quase espiritual, que contrasta de muito com o grosseirismo terrestre, que penetra e desfigura seus poemas de amor vulgar. O "Sonho", onde se encontram traçados alguns dos incidentes de sua separação dela, no momento da partida para suas viagens, jamais foi ultrapassado em fervor, delicadeza e sinceridade, misturados a qualquer coisa de etéreo, que eleva e enobrece o poema. É o que nos permite duvidar que ele jamais tenha escrito coisa tão pouco popular. Temos certa razão para crer que sua atração por Mary (nome que para ele parece ter possuído um encanto especial) fosse séria e durável. Há, desse fato, cem provas evidentes em seus escritos. Mas a seriedade e a duração desse amor, não vão de encontro à opinião de que essa paixão (se tal nome lhe pode ser propriamente dado), apresentou um caráter eminentemente romântico, vago e imaginativo. Nascida da ocasião, dessa necessidade de amar que a juventude experimenta, foi ela entretida e alimentada pelas águas, as colinas, as flores e as estrelas. Nenhuma relação direta tem com a pessoa, o caráter ou a retribuição de afeição dessa Mary. Qualquer mocinha, desde que não fosse despida de atrativos, teria sido amada por ele, nas mesmas circunstâncias de vida comum e de relações livres. Eles se avistavam sem obstáculo e sem reservas. Daí esse amor, não só natural, mas inevitável, como o próprio destino. Em tais circunstância, Mary Chaworth, dotada de beleza incomum e de algum talento, não podia deixar de inspirar uma paixão desse gênero e era feita, por medida, para incarnar o ideal que encantava a imaginação do poeta. É talvez preferível, do ponto de vista do puro romance de seu amor, que suas relações tenham sido rompidas cedo e não mais se tenham reatado. Todo o calor, toda a paixão da alma, a parte real e essencialmente romanesca de sua ligação infantil, tudo isso deve ser inteiramente atribuído a Byron. Se ela sentia alguma coisa de análogo, não foi isso senão o efeito do magnetismo exercido pela presença do poeta. Se ela correspondia, de algum modo, à sua afeição, foi apenas correspondência inevitável, arrancada pelo sortilégio das palavras de fogo, que ele lhe dirigia. Longe dela, Byron conduziu consigo todas as imaginações, que eram o fundamento de sua flama e cujo vigor a ausência só fez aumentar; ao passo que seu amor pela mulher, menos ideal e ao mesmo tempo menos realmente substancial, não tardou a desvanecer-se inteiramente, pelo desaparecimento do elemento que lhe havia dado a vida. Para ela, ele foi apenas um jovem que, sem ser feio nem desprezível, não tinha fortuna, era levemente excêntrico e, sobretudo, claudicava. Para ele, ela foi a Egéria de seus sonhos, a Vênus Afrodite saindo, em sua plena e sobrenatural beleza, da espuma cintilante, por sobre o oceano tempestuoso de seus pensamentos. ------------------------------------------------ Se algum homem já impôs à palavra a impressão de seus pensamentos, esse homem foi Shelley. Se algum poeta há cantou, como um pássaro canta, por impulso natural, com ardor, com inteiro abandono, para si somente e para a pura alegria de seu próprio canto, foi esse o poeta da "Sensitiva". De arte, a não ser essa parte instintiva que é inseparável do gênio, ele nada tem, ou melhor, desdenhou-a completamente, na realidade, ele desdenhava a regra que emana da lei porque encontrava sua lei em sua própria alma. Seus cantos são apenas notas falhadas, esboços estenográficos de poemas, esboços que bastavam amplamente à inteligência dele e que ele não queria ter o trabalho de desenvolver, descuidoso como era de comunicá-lo a seus semelhantes. Por essa razão, a leitura de suas obras é das mais fatigantes. Mas, se cansa, é porque aquilo que nelas nos parece o desenvolvimento difuso de uma idéia não passa da concentração concisa de um grande número de idéias; e essa concisão muitas vezes se toma por obscuridade. Um homem assim não podia pensar em imitar; isso de nada lhe teria servido, pois ele apenas se dirigia à sua própria alma, incapaz de compreender qualquer outra linguagem; daí resulta sua originalidade verdadeiramente profunda. A estranheza de Shelley provém da percepção intuitiva dessa verdade, que só Bacon exprimiu em termos precisos, o dizer: "Não há beleza à qual não se alie alguma estranheza. " Mas, tenha sido Shelley obscuro, original ou estranho, o certo é que ele foi sempre sincero: esse poeta não conhecia a agitação. ---------------------------------------- Tomaz Moore, o literato mais hábil de seu tempo e talvez de todos os tempos, é vítima da infelicidade singular e realmente maravilhosa de se achar depreciado por causa da profusão, com que esparziu belezas por sua obra. O brilho de qualquer uma das páginas de LALLAH ROOKH bastaria para firmar-lhe a reputação; mas esta teve de sofrer, por causa da cintilância prodigalizada no livro inteiro. Parece que as leis da economia política não podem ser infringidas, nem mesmo pelos poetas inspirados! Se uma versificação perfeita, um estilo vigoroso, uma fantasia infatigável forem demasiadamente constantes, acabam por não ter mais valor: como a água que bebemos, sem a qual não podemos viver, e que, contudo, desprezamos. ---------------------------------------------- Nossa literatura esta infestada por um enxame de sujeitinhos, que acabam por conquistar uma reputação real, quando mais não seja, pela continuidade e persistência de seus apelos ao público. Este nem um instante se pode desembaraçar de tais parasitas, ou esquecer suas pretensões. Não consideraremos o trabalho desses animálculos, como igual a nada, porque eles chegam, como já disse, a produzir um efeito positivo. Mas o zero, ainda que elevada à maior potência, jamais produzirá unidades; e tal trabalho será melhor expresso pelas quantidades negativas, pelos menos que zero. ------------------------------------------------ Os romanos honravam suas insígnias; e a insígnia romana era algumas vezes a águia. A nossa insígnia não é senão o décimo de uma águia - um dólar- mas nós não nos embaraçamos em adorá-lo, com uma devoção dez vezes mais forte. ------------------------------------------ O mundo está atualmente infestado por uma nova seita de filósofos, que ainda não reconheceram que formam uma seita e, por conseqüência, não adotaram nome. São os crentes em todas as velharias (o mesmo que dizer: pregadores do velho). O grão-sacerdote, a Leste, é Carlos Fournier,- a Oeste Horácio Greeley e grão-sacerdotes são eles sinceramente. O único laço comum entre a seita é a credulidade; - chamemos a isto demência e acabou. Perguntai a um deles por que crê nisto ou naquilo: e, se for consciencioso (os ignorantes em geral o são), dar-vos-á uma resposta análoga à que deu Talleyrand, quando lhe perguntaram por que acreditava na Bíblia: "Acredito, respondeu ele, primeiro, porque sou bispo de Autun, e segundo, porque não entendo nada do que ela contém." o que esses tais filósofos chamam argumento é uma maneira lá deles de negar o que é e de explicar o que não é. ------------------------------------- Crescem nossos críticos em número a tal ponto, que se deveria, pelo menos, dizimá-los. Será que não temos um crítico, com bastantes nervos, para estrangular dois ou três in terrorem? Deveria ele fazer uso, naturalmente, duma corda de seda, como se faz na Espanha, para os Grandes, de sangue azul. ------------------------------------------- Estas imensas bolsas, semelhantes ao pepino gigante, que estão em moda, entre as nossas beldades, não tem, como se pensa origem parisiense; são perfeitamente indígenas. Por que semelhante moda em Paris, onde uma mulher não guarda na bolsa senão seu dinheiro? Mas a bolsa duma americana! É preciso que esta bolsa seja bastante vasta, para que ela possa ali encerrar todo o seu dinheiro, - e mais toda sua alma! ---------------------------------------------------- Um francês - talvez tenha sido Montaigne - diz: "Fala-se em pensar, mas quanto a mim, nunca penso, senão quando me sento para escrever." é o fato de nunca pensar, salvo quando nos sentamos para escrever, a causa de produções tão fracas. Mas talvez haja, na observação deste francês, alguma coisa de mais que não se acreditaria à primeira vista. É certo que o ato apenas de redigir tende, em alto grau, a dar mais lógica ao pensamento. Todas as vezes que estou descontente com uma concepção do meu cérebro, por motivo de sua vaguidão excessiva, recorro imediatamente à pena, com o fim de obter, graças ao seu auxílio, a reforma, a coerência e a precisão necessárias. Quantas e quantas e quantas vezes não ouvimos a observação de que tal ou qual pensamentos ultrapassa a esfera das palavras?! Não acredito que um pensamento propriamente dito possa estar fora do alcance da linguagem. Prefiro imaginar que, onde uma dificuldade se apresenta, há, na inteligência que a ela se aplica, uma falta de decisão ou de método. Quanto a mim, jamais tive pensamentos que não pudessem ser expresso por palavras, e mesmo com uma nitidez superior à com que eu os havia concebido: como o observei acima, o pensamento se torna mais lógico pelo esforço exigido pela sua representação escrita. Há, todavia, uma classe de fantasias, duma delicadeza rara, que não são pensamentos, e às quais, até aqui, achei absolutamente impossível adaptar à linguagem. Sirvo-me da palavra fantasia ao acaso, e unicamente porque necessito empregar uma palavra qualquer; mas a idéia que se liga comumente a este termo não é aplicável, nem mesmo de longe, às sombras de sombras em questão. Elas me parecem mais psíquicas que intelectuais. Não se elevam a alma (aí! Tão raramente!), senão no momento de suas fases mais intensamente sossegadas - quando a saúde corporal e moral é perfeita - e somente naqueles instantes de tempo em que os confins do mundo que desperta se fundem nos do mundo dos sonhos. Só me torno cônscio dessas "fantasias", quando me encontra `"beira" do sono e com a consciência do meu estado. Contentei-me em saber que esta condição só existe, durante um tempo inapreciável - e, no entanto, se incorpora ela a essas "sombras de sombras", e um pensamento absoluto exige certa duração. Essas fantasias contêm um êxtase delicioso, tão afastado dos êxtases mais deliciosos do mundo da vigília ou dos do sonho, quanto o é de seu inferno o céu das mitologias setentrionais. Considero estas visões, no momento em que se erguem, com um temor que, até certa medida, modera e tranqüiliza o êxtase é, em si mesmo, duma essência superior à natureza humana - que é um relance de vista sobre o mundo externo dos espíritos; e chego a esta conclusão - se este termo pode ser de alguma maneira aplicado à intuição instantânea - que a delicia experimentada comporta, na sua base, o absoluto da novidade. Digo o absoluto - porque nestas fantasias - permiti-me que as chame agora de impressões psíquicas - não há realmente nada que se aproxime do caráter das impressões geralmente experimentadas. É como se os cinco sentidos fossem suplantados por cinco miríades de outros sentidos, estranhos à natureza mortal. Ora, tenho tão inteira confiança no poder da palavra que, por momentos, acreditei possível dar corpo, na sua própria imaterialidade, às fantasias que tentei descrever. Em experiências tenho este objetivo em vista, fui bastante longe a ponto de controlar, à primeira vista, (quando a saúde do corpo e da alma é satisfatória) a existência desta condição: quero dizer que sou agora capaz, (salvo em caso de doença) de prever a vinda, jamais podia eu antes estar certo, mesmo nas circunstância mais favoráveis. Em uma palavra, quero dizer que posso estar certo, quando todas as circunstância são favoráveis, da vinda desta condição, e sentir-me eu mesmo capaz de faze-la nascer, ou de obriga-la a nascer: entretanto, as circunstâncias favoráveis não deixam de ser raras - do contrário já teria eu obrigado o céu a descer à terra. Em segundo lugar, esforcei-me por impedir o deslizamento do ponto de que falei - o ponto de fusão entre a vigília e o sono - de impedir, repito, à vontade, o deslizamento, desde as fronteiras até o reino do sono. Não é que eu possa prolongar esta condição - nem aumentar a duração desse ponto - mas eu posso saltar desse ponto à vigília; e assim transportar o próprio ponto ao reino da Memória; enfim, conduzir essas impressões, ou mais propriamente a lembrança delas, a um estado em que (embora por um período bastante curto) eu possa examiná-las analiticamente. Por estas razões - isto é, pelo fato de me ter tornado capaz de dar esse grande passo - não desespero completamente de incarnar em palavras números bastante grande das fantasias em questão, para dar a certas classes de inteligências, uma vaga idéia de seu caráter. Do que adianto, não se deve concluir que suponho essas fantasias, ou impressões psíquicas, às quais faço alusão, limitadas à minha própria pessoa - e não, numa palavra, comuns à humanidade inteira; porque neste ponto, é me absolutamente impossível formar uma opinião; mas o de que estou mais certo do que tudo, é de que a narração, mesmo parcial, de tais impressões faria estremecer a inteligência universal da humanidade, com a suprema novidade dos elementos postos em ação e das sugestões que deles decorreriam. Em resumo, se jamais tivesse eu de redigir uma memória, a respeito desta questão, o mundo seria obrigado a reconhecer que eu afinal levei a cabo uma coisa original.
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