PREFÁCIO AOS POEMAS

 ESTAS ninharias são coligidas e publicadas de novo, principalmente a-fim-de redimi-las dos muitos aperfeiçoamentos a que foram expostas, enquanto faziam "excursões pela imprensa". Sinto-me naturalmente desejoso de que aquilo que escrevi circule tal como foi escrito, se é que deve circular. Em defesa de meu próprio gosto, contudo, cabe-me dizer que penso nada haver neste volume de muito valor para o público, nem de muito crédito para mim.
Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar, em qualquer ocasião, um esforço sério naquilo que, sob mais felizes circunstâncias, teria sido a carreira de minha escola. Para mim, a poesia não tem sido uma finalidade, mas uma paixão; e as paixões deveriam merecer reverência; não devem, nem podem, ser excitadas á vontade, com vistas às mesquinhas compensações, ou aos louvores, ainda mais mesquinhos, da humanidade. (1845) E.A.P.

	O CORVO

			Tradução Oscar Mendes e Milton Amado


Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém"- fiquei a murmurar - "que bate à porta, devagar;
		sim, é só isso e nada mais".

Ah claramente eu relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amargura, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
		e nome aqui já não tem mais.

A sede rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo
		É apenas isso e nada mais".

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta". Escancarei então a porta:
		- escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquirí-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
		Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, derepente,
mas forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela"- penso então. - "Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento, 
o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
		É o vento só e nada mais".

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
		empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular"- então lhe digo
"não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
		E o Corvo disse: "Nunca mais."

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
		e que se chame "Nunca mais".

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: "Amigos… sempre vão-se embora".
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora."
		E disse o Corvo: "Nunca mais."

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que perplexo,
julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: - o ritornelo 
		de "Nunca, nunca, nunca mais".

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
e, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
		grasnava sempre: "Nunca mais".

Sentindo da ave, incandescente, olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
		já não repousa, ah! nunca mais…

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
"Mísero!"- exclamo - "Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve -, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"
		E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta!" - brado - "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita, imploro, diz-mo em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad! Imploro! Diz-mo, em verdade!"
		E o Corvo disse "Nunca mais."

"Profeta!" - exclamo - "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
		E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida!"- ergo-me e grito, alma incendiada. -
"Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"
		E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
		não há de erguer-se, aí! Nunca mais!

	
	O CORVO
					Tradução FERNANDO PESSOA
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
		É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio de dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais
Como eu queria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
		Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
		É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, de certo me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando vieste batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…" E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
		Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, 
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais, Isto só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais" Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nemhum momento. Mas com ar sereno (*solene) e lento pousou sobre os meus umbrais, Num, alvo busto de Atena que há por sobre (*os) meus umbrais Foi, pousou, e nada mais. E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais,
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o Corvo, "Nunca mais". Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais". Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento, Perdido murmurei lento. "Amigos, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais."
Disse o Corvo, "Nunca mais". A alma súbito movida por frase tão bem cabida, "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais. Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesperança de seu canto cheio de ais Era este "Nunca mais. Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que quíra esta ave agoreira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aqule "Nunca mais". Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais! Fez então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. "Maldito!" ,a mim disse "deu te Deus, por anjos concedeu te O esquecimento; valeu te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!" Disse o corvo, "Nunca mais". "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais, A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo, A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!" Disse o corvo, "Nunca mais". "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais! Disse o corvo, "Nunca mais". "Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!" eu disse. "Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais! Disse o corvo, "Nunca mais". E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda No alvo busto de Atenas que há por sobre os meus umbrais Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais. E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais, Libertar-se-á… nunca mais!
O CORVO

Tradução de Machado de Assis

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.

E o rumor triste, vago, brando,
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto e: "Com efeito
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minhalma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora -
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta:
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais tarde; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos.
Ela, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso.
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto
Movendo no ar as suas negras alas.
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta,
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é o seu nome: "Nunca mais."

No entanto, o Corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais."

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera.
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais."

Assim, posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava,
Conjecturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto,
Onde os raios da lâmpada caiam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso.
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: "Existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais.
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

 

 

(VERSÃO ORIGINAL) THE RAVEN - EDGAR ALLAN POE

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
over many a quaint and curious volume of forgoten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
"Tis some visitor", I muttered, "tapping at my chamber door -
- Only this and nothing more."

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought is ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow
From my bood surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore, -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore.

And the silken, sad uncertain rusting of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating;
"'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door -;
This it is and nothing more."

Presently my soul grew stronger: hesitating then no longer,
"Sir", said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" - here I opened wide the door -
This it is and nothing more."

Presently my soul grew stronger: hesitating then no longer,
"Sir", said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" - here I opened wide the door -
Darkness there and nothing more.

Deep into that darkness peering, long stood there, wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore!"
This I whispered, and an echo murmured bach the word, "Lenore!"
Merely this and nothing more.

Back into the cahmber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping, somehing louder than before.
"Surely", said I, "Surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore, -
Let my heart be still a moment and this mystery explore -
'Tis the wind and nothing more."

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he, not a minute stopped or stayed he,
But, with mien of lord or lady perched above my chamber door -
Perched upon of Pallas just above my chamber door -
Perched and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou", I said, "art sure no craven,
Ghastly, grim, and ancient Raven, wandering from the nightly shore:
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven, "Nevermore".

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning, little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seein bird above his chamber door -
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door -
With such name as "Nevermore".

But the Raven, sitting lonely on that placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing farther then he uttered, not a feather then he fluttered;
Till I scarcely more than muttered, "Other friends have flown before:
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before."
Then the bird said, "Nevermore".

Startled at the stilness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless", said I, "what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore,
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of'Never - nevermore'."

But the Raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking what this ominous bird of yore,
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in corking "Nevermore".

This I sat engaged ind guessing, but no syllabe expressing
To the fowl, whose fiery eyes now burned into my "bosom's" core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamplight gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamplight gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen ceser
Swung by seraphin whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch", I cried, "thy God hath lent thee - by these angels he hath sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!"
Quoth the Raven, "Nevermore".

"Prophet", said I, "thing of evil! - prophet still, if bird of devil! -
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by Horror haunted - tell me truly, I implore:
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tel me, I implore!"
Quoth the Raven, "Nevermore".

"Prophet!", said I, Thing of evil! - prophet still, if bird of devil!
By that Heaven that bends above us, by that God we both adore,
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore:
Clasp a rare and radiant maiden hom the angels name Lenore."
Quoth the Raven, "Nevermore".

"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting:
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! quit the bust above my door!
Take thy form out my heart, and take thy form from off m door!"
Quoth the Raven, "Nevermore".

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamplight o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the foor
Shall be lifted - nevermore!

CHARLES BAUDELAIRE

Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je méditais, faible et fatigué, sur maint précieux et curieux volume d'une doctrine oubliée, pedant que je donnais de la tête, presque assoupi, soudain el se fit un tapotement, comme de quelqu'un frappant doucement, frappant à la porte de ma chambre. "C'est quelque visiteur, - murmaurai-je, - qui frappe à la porte de ma chambre; ce n'est que cela, et rien de plus."

Ah! distinctemente je me souviens que c'était dans le glacial décembre, et chaque tison bordait à son tour le plancher du reflet de sun agonie. Ardemment je désirais le matin: en vain m'étais-je efforcé de tirer de mes livres un sursis à ma tristesse, ma tristesse pour ma Lénore perdue, pour la précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Lénore, - et qui'ici on ne nommera jamais plus.

Et le soyeux, triste et vague bruissement des rideaux pourprés me pénétrait, me remplissait de terreurs fantastiques, inconnues pour moi jusqu'à ce jour; si bien qu'enfin, pour apaiser le battement de mon coeur, je me dressai, répétant: "C'est quelque visiteur que sollicite I'entrée à la porte de ma chambre, quelque visiteur attardé sollicitant sollicitant I'entrée à la porte de ma chambre; - c'est cela même, et rien de plus."

Mon âme en ce moment se sentit plus forte. N'hésitant donc pas plus longtemps: "Monsieur, - dis-je, - ou madame, en vérité, j'implore votre pardon; mais le fait est que je sommeillais, et vous êtes venu frapper si doucement, si faiblement vous êstes venu taper à la porte de ma chambre, qu'à peine étais-je certain de vous avoir entendu." Et alors j'ouvris la porte toute grande; - les ténèbres, et rien de plus!

Scrutant profondément ces ténèbres, je me tins longtemps plein
d'étonnement, de crainte, de doute, rêvant des rêves qu'aucum mortel n'a jamais osé rêver; mais le silence ne fut pas troublé, et l'immobilité ne donna aucun signe, et le seul mot proféré fut un nom chuchoté:
"Lenore!" Puremet cela, et rien de plus.

Rentrant dans ma chambre, et sentant en moi toute mon âme
incendiée, j'entendis bientôt un coup un peu plus fort que le premier.
"Sûrement, - dis-je, - sûrement, il y a quelque chose aux jalousies de ma fenêtre; voyons donc ce que c'est, et explorons ce mystère. Laissons mon coeur se calmer un instant, et explorons ce mystère; - c'est le vent, et rien de plus."

Je poussai alors le volet, et, avec un tumultueux battement d'ailes,
entra un majestueux corbeau digne des anciens jours. II ne fit pas la moindre révérence, il ne s'arrêta pas, il n'hesita pas une minute; mais, avec la mine d'un lord ou d'une lady, il se percha au-dessus de la porte de ma chambre; - il se percha, s'installa, et rien de plus.

Alors, cet oiseau d'ébène, par la gravité de son maintien et la sévérité de sa physionomie, induisant ma triste imagination à sourire: "Bien que ta tête, - lui dis-je, - soit sans huppe, et sans cimier, tu n'es certes pas un poltron, lugubre et ancien corbeau, voyageur parti des rivages de la nuit. Dis-moi quel est ton nom seigneurial aux rivages de la nuit plutonienne!" Le corbeu dit: "Jamais plus!

"Je fus émerveillé que ce disgracieux volatile entendit si facilmente la parole, bien que sa réponse n'eût pas un bien grand sens et ne me fût pas d'un grand secours; car nous devons covenir que jamais il fut donné à un homme vivant de voir un oiseau au-dessus de la porte de sa chambre, un oiseau ou une bête sur un buste sculpté au-dessus de la porte de sa chambre, se nommant d'un nom tel que Jamais plus!

Mais le corbeau, perché solitairment sur le buste placide, ne proféra que ce mot unique, comme si dans ce mot unique il répandait toute son âme. II ne prononça rien de plus; il ne remua pas une plume, - jusqu'à ce que je me prisse à murmurer faiblement: "D'autres amis se sont déjà envolés loin de moi; vers le matin, lui aussi, il me quittera comme mes anciennes espérances déjà envolées." L'oiseau dit alors: "Jamais plus!"

Tressaillant au bruit de cette réponse jetée avec tant d'à-propos: "Sans doute, - dis-je, -ce qu'il prononce est tout son bagage de savoir, qu'il a pris chez quelque maître infortuné que le Malheur impitoyable a poursuivi ardemment, sans réptit, jusqu'à ce que ses chansons n'eussent plus qu'un seul refrain, jusqu'à ce que le De Profundis de son Espérance eût pris ce mélancolique refrain: "Jamais, jamais plus!"

Mais, le corbeau induisant encore toute ma triste âme à sourire, je roulai tout de suit un siége à coussins en face de l'oiseau, du buste et de la porte; alors, m'enfonçant dans le velours, je m'appliquai à enchaîner les idées aux idées, cherchant ce que cet augural oiseau des anciens jours, ce que ce triste, disgracieux, sinistre, maigre et augural oiseau des anciens jours voulait faire entendre en croassant son Jamais plus!

Je me tenais ainsi, rêvant, conjecturant, mais n'adressant plus une syllabe à l'oiseau, dont les yeux ardents me brûlaient maintenant jusqu'au fond du coeur. Je cherchai à deviner cela, et plus encore, matête reposant à la lumière de la lampe, ce velours caressé par la lumière de la lampe que sa tête, à Elle, ne pressera plus, - ah jamais plus!

Alors, il me sembla que l'air s'épaississait, parfumé par un encensoir invisible que balançaient des séraphins dont les pas frôlaient le tapis de la chambre. "Infortuné! - m'écriai-je, - ton Dieu t'a donné par ses anges, il t'a envoyé du répit, du répit et du néphenetés dans tesressouvenirs de Lénore! Bois, oh! bois ce bon néphentés, et oublie cette Lénore perdue!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Prophète! - dis-je, être de malheur! oiseau on démon, mais toujours prophète! que tu sois un evoyé du Tentateur, ou que la tempête t'ait simplement échoué, naufragé, mais encore intrépide, sur cette terre déserte, ensorcelée, dans ce logis par l'Horreur hanté, - dismoi sincèrement, je tén supplie, existe-t-il, existe-t-il un baume de Judée? Dis, dis, je t'en supplie!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Prophète! - dis-je - être de malheur! oiseau ou démon! toujours prophète! par ce ciel tendu sur nos têtes, par ce Dieu que tous deux nous adorons, dis à cette âme chargée de douleur si, dans le Paradis lointain, elle pourra embrasseur une fille sainte que les anges nomment Lénore, embrasser une précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Lénore." Le corbeau dit: "Jamias pllus!"

"Que cette parole soit le signal de nôtre séparation, oiseau ou démon! - hurlai-je en me redressant. - Rentre dans la tempête, retourne au rivage de la nuit plutonienne; ne laisse pas ici une seule plume noire comme souvenir du mensonge que ton âme a proféré;
laisse ma solitude inviolée; quitte ce buste au-dessus de ma porte;
arrache ton bec de mon coeur et précipite ton spectre loin de ma porte!" Le corbeau dit: "Jamais plus."

Et le corbeau, immuable, est toujours installé, toujours installé sur le buste pâle de Pallas, juste au-dessus de la porte de ma chambre; et ses yeux ont toute la semblance des yeux d'un démon que rêve; et la lumière de la lampe, en ruisselant sur lui, projette son ombre sur le plancher; et mon âme, hors du cercle de cette ombre qui git flottante sur le plancher, ne pourra plus s'élever, - jamais plus!

Tradução de "O corvo" do francês de Baldelaire.

Uma vez, à hora lúgubre da meia-noite, eu meditava, fraco, fatigado, quase adormecendo, sobre muitos volumes interessantes e valiosos de uma doutrina esquecida. De repente, ouvi, ligeiro ruído, como de alguém batendo, de leve, à porta do meu quarto. "É alguma visita", murmurei eu, e nada mais. Estávamos em dezembro, recordo-me distintamente.

As achas meio queimandas desenhavam no solo o reflexo da sua agonia.
 Eu desejava ardentemente a manhã! Em vão, pedia aos livros o esquecimento de minhas mágoas... Pensava sempre nela, na minha Leonor perdida, na mulher rara e deslumbrante que os anjos chamam ainda de Leonor e que os homens não chamarão mais!

O vago sussuro dos reposteiros ondulantes enchia-me de um terror fantástico e melancólico. Para acalmar a agitação que me assustava, levantei-me, repentino: "É alguem que bate à porta, alguma visita tardia, que solicita a entrada do meu quarto; sim é isso, e nada mais".

Então senti o espírito um pouco fortalecido, e sem hesitar mais tempo:  
- Senhor ou senhora, tende a bondade de perdoar-me. Estava meio adormecido e batestes tão devagarinho que apenas tenho a consciência de vos ter ouvido.
 Assim dizendo, abri a porta de par em par, mas só vi trevas e nada mais!

E a perscrutá-la profundamente, fiquei muito tempo cheio de espanto, de receio e de dúvidas, fazendo sonhos que mortal algum jamais ousou sonhar; mas nada perturbou o silêncio e a imobilidade das trevas, senão um nome proferido por mim:
   "Leonor!" e o eco murmurando a seu turno "Leonor!" Só isto e nada mais!

Tornando a entrar no quarto, com a alma em fogo, ouvi um ruído um tanto mais forte que o primeiro. "Há por força alguma coisa de extraordinário nas tabuinhas da minha janela; vamos ver o que é, exploremos este mistério. Provavelmente, é o vento, e nada mais!"

Abri então a janela, e um corpo majestoso, digno dos antigos tempos, entrou pelo quarto a dentro, com um bater de asas tumultuoso. Sem me fazer uma simples cortesia, adiantou-se com a imponência de um "lord" ou de uma "lady" e empoleirou-se num busto de Palas, colocado justamente por cima da porta do meu quarto.  

A gravidade do seu aspecto e a severidade da sua fisionomia fizeram sorrir a minha triste imaginação: - Embora tua cabeça - disse-lhe eu - não tenha popa, nem cimeira, não és por certo um pássaro ordinário. Dize-me qual o teu nome senhorial nas costas da noite plutônica? - Nunca Mais!

Fiquei pasmo de ver aquele desengraçado volátil compreender assim a palavra, posto que a sua resposta não tivesse grande senso, nem respondesse de modo algum à minha pergunta, porque é preciso confessar que nunca foi dado a um homem vivo, ver, por cima da porta do seu quarto, um pássaro ou um bicho, sobre um busto esculpido, com semelhante nome: "Nunca Mais".   

Mas o corvo, solitariamente empoleirado no busto plácido, não proferiu senão aquela palavra única, como se nela toda a sua alma se espargisse. Então murmurei em voz baixa: - Todos os amigos me têm deixado: amanhã, também este me fugirá, assim como todos os outros me fugiram, assim como voaram as minhas ridentes esperanças!E o pássaro tornou a dizer: - Nunca Mais!

Ao ouvir aquela resposta tão a propósito, estremeci. - Provavelmente, disse eu comigo mesmo, não sabia senão esta palavra. Isto ele aprendeu com algum mestre infortunado, a quem a ímpia desgraça perseguiu sem tréguas, e cujos cantares acabaram por não ter senão aquele melancólico estribilho, espécie de "De profundis" de toda as suas esperanças. - Nunca Mais!

Mas o corvo induziu ainda a minha alma triste ao sorriso; puxei a cadeira para defronte dele, do busto e da porta, e comecei a ligar idéia com idéia, procurando adivinhar o que aquela ave agourenta de outros tempos, o que aquele triste, desengraçado, sinistro, magro e agourento pássaro de outrora, queria dizer com "Nunca Mais!" 

Assim me detive um tempo, sonhando, meditando, porém sem mais dirigir a palavra ao pássaro, cujo olhar ardente me abrasava até o íntimo do coração. Eu procurava adivinhar o estribilho do corvo e muitas coisas mais, com a cabeça encostada ao estôfo da madeira; esse estôfo macio de veludo violeta, onde a cabeça dela se recostava outrora!... onde não se rescostará nunca mais!

Então pareceu-me que o ar se tornava mais espêsso, perfumado por um turíbulo invisível, balouçado por serafins, cujos passos deslizaram pelo tapete do quarto.  - Desgraçado! Exclamei eu; Deus, pelos seus anjos, manda-te tréguas e nepentes contra as saudades de Leonor! Bebe, oh! Bebe este bom nepente e esquece Leonor, perdida para sempre! E o corvo tornou a dizer: - Nunca Mais!

- Profeta! - disse eu - ser de desgraça! Pássaro ou demônio, contudo profeta! Pelo céu que nos cobre, pelo Deus que ambos adoramos, dize-me se esta alma, esmagada pela dor, poderá um dia, no paraíso longínquo, abraçar uma donzela santa, preciosa e deslumbrante, a quem as anjos chamam Leonor? respondeu:
- Nunca Mais!

-Sejam as tuas palavras o sinal da nossa separação, pássaro ou demônio! - exclamei eu - pondo-me em pé. Volta à tempestade e às costas da noite plutônica! Não deixes aqui nem uma só das tuas penas negras, em memória da mentira que acabas de proferir. Não violes por mais tempo a minha solidão. Tira-te da minha porta, arranca o teu bico do meu coração e precipita o teu espectro para bem longe deste quarto! O corvo disse: - Nunca Mais!

_E imutável, continua sempre empoleirado no pálido busto de Palas, por cima da porta do meu quarto. Os seus olhos, com um brilho demoníaco, parecem pensativos; a luz da minha lâmpada projeta a sua sombra sobre o solo, e além do circuito desta sombra, a minha alma não poderá elevar-se nunca mais!
 

 

As traduções do poema O Corvo


Edgar Poe - Literatura

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