BRASIL (500 ANOS):
ANARQUIA INSTITUCIONALIZADA
São Luís, Ma,
13:51 horas, 17 de abril de 2000.
Faltam 5 dias para o Brasil completar 500 anos. Se esta data é uma marco ou
um engodo (deixando-se de lado), pode-se ler isto no Relógio dos 500 Anos, também
aqui instalado para comemorar a passagem dos 500 anos de história oficial do
país. Deixando-se também de lado a postura iconoclasta gratuita, como se vivêssemos
num inferno dantesco (e até para não ferir, para não ofender Dante), apenas
constatemos, juntos, o paradoxo do título do artigo e da nossa terra mãe, do
nosso chão. É, crianças, a idéia de anarquia, ao contrário do que se costuma
pensar, não está ligada à noção de caos, sinônima de balbúrdia, de bagunça,
mas à idéia de Paraíso Perdido, ao mito da Idade do Ouro, ou seja, a um tempo
de felicidade, tempo de perfeita harmonia entre os homens, um tempo de igualdade,
em que o trabalho não era um castigo, mas uma atividade desejada e agradável.
É que os primeiros pensadores anarquistas — à semelhança também dos primeiros
socialistas — concebiam o anarquismo como um modo de vida natural, possível
entre os membros da sociedade desde que se retirassem os obstáculos a que desabrochasse
a essencial bondade humana. Os anarquistas acreditavam que o homem tem uma tendência
natural para a bondade e a justiça. Tanto isto é verdade que mesmo um anarquista
radical, como o foi Bakunin, chegou a afirmar que “a liberdade, a moralidade
e a dignidade humanas consistem, precisamente, disto: de que o homem faz o bem
não por que é ordenado, mas por que assim o concebe, deseja-o, ama-o.”
Mas ora vejam só.... Em sua origem, a anarquia não está ligada à idéia de desordem, de violência, de convulsão e caos social, mas a uma idéia de paz, de harmonia e consenso naturais entre os homens e em que se prescindiria das arké, quer dizer, das instituições (notadamente as de poder, congressos, assembléias, polícia, tribunais, etc.) para a vida em sociedade. A visão da anarquia como índice de desordem social firmou-se, na verdade, a partir das revoluções ocorridas na Europa, em 1848, quando, por um lado, o capitalismo industrial em expansão descia o cacete e, por outro, os anarquistas e socialistas utópicos, um tanto quanto cansados de esperar que o tal do paraíso acontecesse, resolveram partir para a ação direta, e violenta. Mas, na sua maioria, os principais anarquistas foram homens pacíficos e, como bem analisa Bertrand Russel, os homens que atiraram a bomba que iniciou a Primeira Guerra Mundial não foram anarquistas, como igualmente (digo eu) não o são os que iniciaram mais esta nova guerra de final de século, que voltou a devastar Sarajevo, em 1998, e que, novamente, matou tanta gente.
Mas o fato é que a concepção de anarquia que se fixou no pensamento do povo foi a de bagunça, de desordem, de caos social, um momento em que as instituições não funcionam e em que o Estado não está, de algum modo, cumprindo com o seu papel, se encontra acéfalo.E é exatamente esta a concepção de anarquia que nos interessa para que se possa dimensionar, adequadamente, a história do nosso país em seus 500 anos e desvendar esta esfinge (ou esta gárgula?) de qual seria o regime político em que vivemos. Se por um lado a anarquia se configura pela inexistência ou pela influência mínima das instituições sobre o corpo social, como existirá uma anarquia havendo instituições, meus amigos? Eis o contra-senso que Cabral não avistou. Sim. Mas um pouco de teoria (só para que não se diga que se quer é radicalizar, anarquizar). Afinal, sob que regime político temos vivido? Monarquia? Oligarquia? Democracia? Qual? Considerada a formulação do Estado, seja na vertente de Aristóteles (histórico-evolucionista: de formas primitivas para formas mais evoluídas), seja na vertente justanaturalista, que se fundamenta no estudo da natureza dos seres humanos e cria um estado abstrato e racionalizado, ou, ainda, na vertente hegelo-marxiana, também histórica e que apóia suas concepções na análise das contradições da esfera social em relação com as contradições da esfera política, enfim, seja qual for a linha de pensamento, o Estado é sempre entendido como um avanço contra a barbárie ou, pelo menos, contra o desequilíbrio do estado de natureza (como o extrai Norberto Bobbio dos pensadores justanaturalistas) ou, por fim, deixando de conversa mole, e em termos bem brasileiros, contra a lei do mais forte ou simplesmente do mais influente. Sem dúvida que a declaração dos direitos (primeiro arremedo de constituição), imposta ao rei João Sem Terras em 1.215, ainda que visasse mais à preservação dos direitos dos senhores feudais ingleses, o direitos dos poderosos, foi, no entanto, um marco a respeitar como elemento fundamental à estruturação do Estado moderno. De modo que o Estado, conceptualmente, foi criado para que um “nobre” não pudesse mais arrebentar a cabeça de um “plebeu” simplesmente por que este não lhe deu preferência de passagem sobre uma ponte ou para que este Estado pudesse suprir as necessidades dos seus membros que, por algum motivo, se encontrem em dificuldades. Para isso inventaram-se as instituições.
É até cansativo se saber que, não funcionando, de fato, as instituições, o Estado perde sua razão de ser, não se justifica. Raciocinemos. No Brasil, todas as instituições que são responsáveis pelas principais obrigações sociais do Estado, tais como Educação, Saúde, Segurança, Justiça e Trabalho, sem dúvida, existem de direito. Mas a realidade, o fato concreto, é que a nossa Educação apresenta ainda índices vergonhosos, com cerca de 48,8% de nossa população analfabeta (se formos realistas e considerarmos também os analfabetos funcionais: pessoas que foram alfabetizadas, mas que não conseguem utilizar esta alfabetização em suas atividades diárias, 34,1%). Cerca de 60 das nossas crianças, em cada mil, morrem antes de completar 5 anos de idade, uma média muito alta, até mesmo se comparada à de outros países da América Latina, que é de 43 óbitos. Quer dizer, a nossa Saúde não funciona, a maior parte da população, a classe média e a baixa, morre nas filas dos hospitais públicos e/ou é espoliada pelos planos de saúde, que o Estado vai tentando remendar, e só, depois de uma privatização desumana e indigna, para não dizer selvagem. No que diz respeito à segurança, a Segurança é uma piada: o Estado não a assegura. Qualquer um de nós, herói, que põe os pés na rua de uma capital qualquer do país, ou mesmo de uma de suas grandes cidades, sabe — na prática, vive-se uma guerra civil. A violência, como se sabe, é a segunda principal causa de mortes do país, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório.
O Brasil, segundo relatório da ONU, divulgado em 1.997, só perde em violência para a Jamaica e a África do Sul. Só em 1.996 foram 119.156 mortes por causas violentas, segundo o tal do Ministério da Saúde, sendo que, em 1.997, a média de casos de homicídios foi de 124 por dia, totalizando cerca 45.400 casos de assassinato. E, o pior, estes números estão crescendo (vocês sinceramente não acham que a coisa está mais para a marcha fúnebre que para o happy birthday to you?). Por fim, não se consegue esconder que, no nosso país, polícia, infelizmente, não significa segurança, sendo considerada pela Human Rights Watch (HRW) como uma das mais violentas do mundo. Sabe-se, no Brasil não existe segurança, seja na cidade, seja no campo, não se precisa apresentar números. Quanto à Justiça brasileira, é a velha história. Ela é lenta como uma porca gorda, donde se pode inferir que, obviamente, é suja. Os nossos códigos são um intrincado de leis que permitem toda a espécie de manipulação, quando não estão obsoletos. Além do que a corrupção, também nesta instância, grassa, aliás, como em todas as instâncias do país. Por isso, não falemos da Justiça, poupemos a Justiça desta lama. Fica a pergunta se temos mesmo algo para comemorar, se vivemos numa autêntica selva, já que desamparo, injustiça e brutalidade são o nosso cotidiano, o que nos leva a afirmar que vivemos sem instituições (visto que estas só existem de direito e, de fato, inexistem), logo, numa anarquia, no pior sentido da palavra, no seu mais pejorativo sentido, sinônima quase que de uma guerra civil não declarada e, no entanto, perceptível, dura como um chute no estômago, real. Fica a pergunta se temos mesmo algo a comemorar se pensamos que o Canadá, que tem como marco de sua história oficial o ano de 1. 497, mas que só começa a ser efetivamente colonizado a partir de 1.554 (54 anos depois do nosso descobrimento), figura como o país com melhor nível de qualidade de vida do mundo e que os Estados Unidos, apesar de ainda hoje mal resolvido socialmente e que só começa a se organizar para valer como nação a partir de 1.620, com a chegada dos puritanos, a turma da touca do Mayflower (vejam só, a partir de 1.620, 120 anos depois do nosso descobrimento!), firmou-se, ainda assim, como grande potência mundial. Pergunto, então, se temos mesmo algo para comemorar?
O Brasil não é um país surrealista, quem vive no Brasil habita um paradoxo, vive numa anarquia institucionalizada, pois as instituições, na prática, não protegem o direito dos cidadãos, não funcionam, ou apenas existem para proteger os interesses dos de mais recursos e prejudicar a grande maioria da população. A grande verdade é que nestes 500 anos fica como consolo para o povo brasileiro, este alegre, este criativo e bonito povo brasileiro, tão bem representado mundialmente por homens como Santos Dumont, Gonçalves Dias, Airton Sena, Edson Arantes do Nascimento, Paulo Freire, Oscar Niemeyer, etc., aquela piadinha infame, mas absolutamente lúcida, em que os presidentes dos EUA, Inglaterra e Rússia vão se reclamar com Deus, dizendo que seria injusto, aquele país (o Brasil) ser abençoado com lindas paragens, um povo criativo, uma natureza pacífica, sem vulcões e outras intempéries cruéis, sem grandes frios, enquanto eles tinham que conviver com todos esses males, ao que Deus, escarnecendo, responde: “É, mas espera só para ver a racinha de políticos que eu vou colocar ali...” Ou seja, o grande problema do Brasil sempre foi a sua classe dirigente, que é como um câncer de ideologias e bandalheiras em constante metástase, grangrenando, contaminando todo o corpo da sociedade com sua índole corrupta. Quantos outros santos dumonts ou pelés não já ficaram pelo caminho, nas fomes dos monturos, na sede e fome das caatingas, nas balas e drogas das favelas.
O que conseguimos avançar, pergunta-se, quanto se assiste a um filme como “Central do Brasil” e se percebe que ali ainda estão presentes, assim como que perpetuados, os mesmos males de “Vidas Secas”, da década de 30 ou, ainda que, neste mesmo filme, uma mulher apela para a venda de crianças pobres o que, de certa forma, é a repetição da problemática da pobreza, que, comumente, corrói a dignidade e que se mantém desde um documentário como “Couro de Gato”, que já é a problemática da pobreza e da desestruturação familiar, neste caso nas favelas, ou mesmo de “Pixote”, na década de 70? Que saco! acho que estou ficando pessimista, e a índole do meu povo não é esta, o ethos dominante de nosso povo ainda é o da moquerie, o do bom humor, ainda bem, herdado ao negro, esta nossa capacidade de transformar mazelas não em suicídios, mas em brilhantes piadas de bar. Não há dúvida, o que se tem de melhor para que se manifestem tantos talentos é a nossa heterogeneidade, a nossa miscigenação (antes tão desrespeitada, como estigma). Não nos enganemos, o povo brasileiro é, realmente, um forte (como o disse Euclides), seja física, seja psicologicamente, e ama a sua terra mãe. Basta ver o orgulho de nossos atletas. E isto, sim, é motivo de alegria. Além do que não sou nem um pouco pessimista e acredito incuravelmente neste país.
No entanto, o que me preocupa não é nada do que já disse, o que me preocupa é a tristeza de saber que as palavras para este povo ainda nada podem (poucos lêem, não lhes é proporcionada, minimamente que seja, a dimensão humana da cultura), o que me preocupa e ver, às 7:40 h da manhã, o menino abestalhado olhando um outro, aproximadamente da sua idade, que distribui papeizinhos de exploração de esmola no ônibus, e perguntando sem entender, para mãe, o que o outro menino está fazendo, e à mãe, constrangida e indefesa, sem saber o que dizer ou fazer, reste apenas brigar com o filho como forma de esconder-lhe tanta miséria. O que realmente agora me preocupa é ele, é ver este homem, é ficar pensando neste velho, de camisa de riscado, calças de uma cor mal definida, com aspecto de homem nascido e criado no campo, na lavoura, seus cabelos brancos, seu chapéu de feltro, seus frangalhos de dignidade, às 12:30 h, na parada do ônibus Habitacional-Turu, em busca de sobreviver com honestidade, andando de pessoa para pessoa, meu Deus, tentando vender vetustos sacos de passar café, em plena virada do século 21! E me pergunto: “Como é que ele vai conseguir, meu Deus, como é que ele vai competir com a Melita...” Deve haver, sim, motivos para que se comemorem os 500 anos do Brasil, mas toda e qualquer iniciativa que não leve em consideração que se tem muito, muito pouco para comemorar, que tente dourar a pílula de nossa situação e não a apresente de frente, é uma ofensa, é uma falta de respeito para conosco. Como bom brasileiro que habita o paradoxo de sua anarquia institucionalizada, que este, sim, é o regime em que vivemos, em que desde sempre vivemos, faço, portanto, o que todo nosso povo faria, diante destes entusiasmo de irrelevantes: Brasil 500 anos? Cara, só se der para tomar uma Kayser antes.
HAGAMENON DE JESUS - poeta São Luís/MA
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