ENTRE OS TESTAMENTOS E O AMOR
Certa vez, ganhei, de um grande amigo, uma Bíblia, com a seguinte dedicatória: "Margarida, ao ler este livro, desejo que você descubra o quão profundamente Deus te ama." Resolvi, então, tentar construir o sentimento de amor, analisando Deus como personagem. Começando pelo Gênesis, encontrei uma figura repressora, criadora de um mundo belo, mas cheio de proibições. Quais teriam sido os grandes planos de Deus para Adão e Eva? Por que não deveriam ter provado o fruto da árvore do jardim? Por que, teoricamente, a população da Terra deveria carregar, para sempre, o estigma do pecado original? E a mulher, além de virar bode-expiatório, foi condenada, eternamente, às dores do parto? O que diria Deus sobre a cesariana? E a peridural? Mas a economia separa; as mais pobres não podem pagar cirurgias especiais e nem anestesia: sofrem, judias vítimas da vingança divina. Continuei procurando o amor. Encontrei Sodoma e Gomorra. Após diversas peregrinações, quando o povo de Israel torna-se muito numeroso e poderoso no Egito, Deus vira o defensor dos judeus e uma parte da sua força agressiva é dividida com o rei do Egito. Uma saída dramática? Em Êxodo, porém, Deus já está fazendo um pacto de exclusividade, o qual, se não respeitado, acarretaria numa série de punições. Cheguei até o Levítico, onde emerge o hedonismo macabro de Deus, com gado esquartejado e picado e aves queimadas. "holocausto é oferta queimada, de cheiro suave ao Senhor"! O editor pediu um artigo curto. Mesmo em todo o espaço do mundo seria difícil descobrir o amor no Antigo Testamento, pois cada página virada reforça o tom de vingança, a retórica da ameaça. O Novo Testamento é, então, extremamente refrescante, com o Cristo bom. Jesus, com certeza, sabia amar, mas, infelizmente, às custas da "outra face", tão bode expiatório quanto Eva. Que vida é essa? E nós, aqui, vivenciando comportamentos de Testamentos Velho e Novo! A Bíblia não é um livro de amor. É uma narrativa verossímil sobre o mundo, eternamente dividido entre os que dominam ou lutam para dominar e os dominados. E daí? Como viver? Freud recomenda: devemos canalizar nosso desejo para o trabalho (atividade produtiva). Outro repressor? Para Marx, vale a pena encarar os dominadores. Então, não podemos abrir mão do poder? Shakespeare prefere explorar todos os conflitos comercialmente em comédias, tragédias, histórias e romances. Podemos rir ou chorar. Nietzsche (para o desespero de Kierkegaard) queimaria todas as Bíblias do mundo. Será que, após longo prazo, o mundo mudaria? Com certeza, ficaria muito mais difícil estudar literatura, pois perderíamos, com a Bíblia, uma chave intertextual para milhares de obras. Talvez meu amigo e eu devamos conversar longamente sobre o conceito do amor. Ph.D. Margarida Gandara Rauen |
O ÓBVIO DO ÓBITO
Sr.
MORTE, um homem de idade desconhecida, acorda todos os dias e dilacera-se
em pensamentos causticantes, pensa: hoje eu vou morrer, eu hei de morrer.
Mas, por puro acaso, ele não morrera. Morreu sim, o seu vizinho.
E, na subida do morro, muita gente chorava.
Eram tantos
que de longe tinha-se a impressão de ver uma procissão
passar. Sr. MORTE também chorava, não pela perda do vizinho,
mas porque aquele que ali estava, todo cercado de velas e velhinhas,
não era ele. Seu desespero era tanto que era tomado por um sentimento
profundo de tristeza e chorava compulsivamente, e todos o consolavam
compreendendo tal sofrimento. Aos poucos, os anos foram passando para
o Sr. MORTE. A vida era uma desgraça mal concebida, seus pensamentos
eram, vinte e quatro horas por dia suicidas. E, dito e feito , certo
dia morreu! No velório, seu sorriso era eterno. Flores circundavam
seu belo caixão. Os chumaços de algodão no seu
nariz chamavam a atenção de todos que até diziam
que, assim, ele ficava muito bem. Simpático, bonito. Agora ele
estava satisfeito, e como alguém que sonhava a vida inteira por
alcançar algo, ele finalmente conseguira, achou a morte. Mas
nem tudo são flores para um aprendiz de morto. A viúva
do Sr. Morte estava travando uma luta judicial para receber a herança
do falecido. Acontece que o Sr. MORTE tinha o mesmo nome que um conhecido
político de sua cidade: ORAEVES BORBA NUNES. Isso mesmo, o Sr.
MORTE, para todos os efeitos, continuava vivo, e não podia morrer
antes da celebridade política. Lá de cima, descontente
com a vida que levava, resolveu permanecer vivo. Ora, se na terra ele
não tinha atestado de óbito, certamente no céu
ele não estava sequer morto, ou vivo, sei lá, mas São
Pedro foi categórico: MORTO BOM É MORTO COM ATESTADO,
E, SE POSSÍVEL, ASSINADO E RECONHECIDO FIRMA PELO PRÓPRIO.
E no céu estava criada a polêmica. Coitado do Sr. MORTE
que passou tantos anos conhecido por seu codinome. E agora nem existia!
A única solução era voltar lá e exigir um
atestado legal de óbito. E com a passagem para a terra na mão,
com a condição que só voltava ao céu devidamente
morto, Sr. MORTE partiu para a dura batalha da vida. - Senhor, eu morri
faz uma semana, estou aqui para receber meu atestado de morte, ou de
óbito, como queira. - O senhor já procurou na esquina?
E assim foram as mais diversas gracinhas. Tentou de tudo. Falar com
o Papa, entrevista em programa de televisão, discurso de praça
pública, e, cansado de tanto tentar provar o seu óbito,
enfim entendera que morrer não valia a pena. Desse dia em diante
passou a dedicar-se a assistências filantrópicas. Casou-se
de novo, teve nove filhos, uma vida bastante longa. Em seu túmulo
está escrito: AQUI JÁS UM HOMEM QUE ATESTOU O ÓBVIO:
ESTAR MORTO É TÃO DIFÍCIL QUANTO ESTAR VIVO.
EKNER MURITIBA PEREIRA JÚNIOR |
O exílio
A cada dia que passava, ele sentia a solidão aproximar-se mais e mais, fazendo-o
um alvo fácil para o desprezo e a angústia, sentia perdido no tempo e no espaço,
tomado por ilusões e pensamentos frios e obscuros, como se a vida já não valesse
mais a pena, como se o sol já teria deixado de brilhar, que o vento já não
mais soava seu doce canto em seus ouvidos, como se o mundo já não tivesse
mais vida; sozinho já fazia parte de seu viver.
Sentia-se
cada vez mais fraco e frágil, todas as pessoas com quem conversava ou tinha
contato, se apoderavam da mesma angústia e sofrimento, já não podia mais viver
socialmente, pois a tristeza que havia em seu rosto e que subitamente se espalhava
pelo seu corpo, mantinha as pessoas distantes, tão distantes, que ao seu redor
parecia sem vida, a quem disse que era contagioso, ou antipatia demais, e
que não seria a companhia adequada para ninguém.
Em seu quarto, sempre se deparava deitado e pensativo, esfaqueava o coração
e a mente, tentava achar um sentido para vida, uma luz ou algo parecido que
o orientasse para o caminho correto e que identificasse a razão do seu sofrer,
mas algo parecia bloquear sua mente, não deixava-o enxergar o caminho pelo
qual deveria prosseguir, como se tivessem mantendo-o infeliz, como se a luz
não brilhasse mais nele, que as horas passassem muito rápido e distantes dele,
tão rápido que ao olhar para o espelho se via inerte ao envelhecimento, sua
pele se confundia com castanhas do Pará de tão onduladas, e mais do que isso,
era muito fina a ponto de se ferir a um carinhoso toque feminino, tão desprazeiroso
era viver assim que um dia resolveu dar um basta em sua vida, seria numa quarta-feira
de manhã, a lua estava partindo e o sol raiando, o céu estava azul e cintilante,
o ar que respirava, que sentia, que escorria em suas glândulas e narinas,
sufocavam seus pulmões de tão puro que era, tudo parecia ter vida, as cotovias
cantarolavam e derramavam sua alegria por cima de todos os seres que ali se
encontravam, todos pareciam contagiados com aquela visão, menos ele que se
sentia ferido e machucado, que estava a ponto de se tornar uma lembrança na
vida de todos, ali se encontrava debruçado ao corrimão que servia de apoio
a ponte dos acontecimentos, - assim chamavam a travessia de carros -, passou
seus pés para outro lado do corrimão, que seria o externo, vagarosamente deitou-se
apoiado ao ferro que se estendia a km de distância, que era muito frio e sem
vida, e ali se comparou com aquele ferro, distanciou-se e soltou uma mão,
naquele momento percebeu que estava deixando de viver, que havia desistido,
que o seu livro da vida estava para estampar nas últimas folhas, aquela palavra
denominada FIM. Suspirou e sem que percebesse derramou uma lágrima de seus
olhos, e por final gaguejou uma última palavra:
- Sou livre!
Ele se arremessou aos céus, caia como se estivesse em câmera lenta, todos
os olhos o acompanhavam, os pássaros observavam aquele ser voando sem asas,
naquela dor imensa fechou seu livro, e desistiu de preenche-lo com sua vida.
Ali acabara de morrer um homem sem destino, sem esperança, uma pessoa que
se comparava a uma rocha de tão dura e silenciosa, todos que o estimavam e
compreendiam-no, e que tentavam mante-lo feliz, se surpreenderam com sua atitude.
Como pudera um homem jogar sua vida fora, como, todos se perguntavam. Alguns
sabiam a razão, e outros não. Mas aqueles que sabiam se calavam, pelo simples
fato de que também eram fracos e covardes por deixar aquela desgraça acontecer.
No seu funeral os amigos rodeavam seu túmulo, todos cabisbaixos com um silêncio
muito profundo, a ponto de se ouvir o corpo do rapaz se decompondo. Ninguém
se atrevia soluçar ou falar uma só palavra, muitos se contorciam de tristeza,
mostravam em gestos seus sofrimentos, ali eram comparados ao rapaz quando
ainda vivo.
Ao soar da corneta, seus amigos ainda em silêncio, vagarosamente como se quisessem
mante-lo em vida na superfície, foram descendo o caixão, a madeira maciça
e oca não duraria por muito tempo, seu corpo plácido estendido ao leito, seria
facilmente devorado pelos vermes. Já se passavam quatro horas de enterro,
os coveiros derramavam a terra vermelha em sua cova, assim mantendo-o distante
de todos, ali ele estava isolado, como sempre havia estado, só que eternamente.
Quando todos se puseram a ir embora, algo extraordinário aconteceu, a paz
teria aterrizado em seu sepulcro, era uma pomba branca, que contemplava todos
em sua volta, sugava-os seus sofrimentos e substituía por uma lembrança majestosa
de felicidade, pois o rapaz ainda quando jovem esbanjava alegria, ao contrário
dos seus últimos dias, ele mantinha todos ao seu redor, tornava a vida um
desafio, dava esperança, contagiava as pessoas, era dono de uma felicidade
imensa. E no calar daquela tristeza, uma voz invadiu o coração de todos.
- Ele se exilou, se manteve distante de tudo e de todos, tornou-se renegado
para a sociedade, o tempo se passou e ele não se superou, a ferida que ardia
em seu peito e que castigava seu coração se expandiu imensamente a ponto de
cometer um erro muito grave. Com Deus ele deve se perdoar, pois a vida que
lhe concedeu, ele desperdiçou com muita facilidade, nesse momento ele se torna
uma lembrança para todos, mas a liberdade que possuiu por poucos segundos
se apagara muito rápido, pois não foi bem conquistada perante o criador da
vida.
- A paz que aqui vemos, e que aqui sentimos, não seria tão bem conquistada
em nosso ser, se a pessoa que aqui descansa, não tivesse desejado.
- A morte lhe trouxe a felicidade, e que assim seja!!!
Hugo Mastromauro da Silva
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