ALGUMA POESIA
POEMA DE SETE FACES

QUANDO NASCI, um anjo torto
desses que vivem na sombra 
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, 
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode 
é sério, simples e forme.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer 
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

POLÍTICA LITERÁRIA
A Manuel Bandeira
O POETA municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.

NO MEIO DO CAMINHO

NO MEIO do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


BREJO DAS ALMAS
é um dos municípios mineiros onde os cereais são cultivados 
em maior escala. Sua exportação é feita para os mercados 
de Montes Claros e Belo Horizonte.
Há também grande exportação de toucinho, mamona e ovos.
A lavoura de cana-de-açúcar tem-se desenvolvido bastante.
Ultimamente, cogita-se da mudança do nome do município, 
que está cada vez mais próspero.
Não se compreende mesmo que fique toda a vida como o 
primitivo: Brejo das Almas, que nada significa e nenhuma 
justificativa oferece.
D'A Pátria, 6-VIII-1931

SEGREDO
A POESIA é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo 
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedisse, perdão.
Não peça.

SENTIMENTO DO MUNDO

TENHO apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
_humildemente vos peço
que me perdoeis

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do
 microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais que a noite

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

ALGUNS anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

JOSÉ

JOSÉ

E AGORA, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
E agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
E agora, José?
 
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber, 
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou, 
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre, 
sua gula e jejum,
sua biblioteca ,_sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais,
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
se valsa vienese
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

 


A ROSA DO POVO

NÃO RIMAREI a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.

- Há mortos? há mercados? há doenças?
É tido meu. Ser explosivo, sem fronteira,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes
[ rugas.
O beijo ainda é sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença do longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é imortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto 
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como o fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel… tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.


NOVOS POEMAS

CANÇÃO AMIGA

EU PREPARO uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dói olhos.

Caminho por uma rua 
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segrego
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

CLARO ENIGMA

MEMÓRIA
AMAR o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


		BIBLIOGRAFIA

Mário de Andrade. Aspectos da literatura brasileira. Rio de Janeiro, 
Amérc-Edit. 1943
Otto maria Carpeau - Origens e fins - Rio de Janeiro, CEB 1943
Álvaro Lins, Jornal de Crítica, 5ª série - Rio de Janeiro Livraria 
José Olympio Editora- 1947
Sérgio Buarque de Holanda - Rebelião e convenção - I Diário 
Carioca, Rio de Janeiro, 1952
João Gaspar Simões "De aprendiz - a mestre do conto brasileiro
 in Letra e Artes, suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro 1951
Hélcio Martins - A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade
 - Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora - 1968
Antônio Houaiss - Drummond mais seis poetas e um problema RJ 
- Imago Editora 1976.

FAZENDEIRO DO AR
A VIDA PASSADA A LIMPO
LIÇÕES DE COISAS
A FALTA QUE AMA
AS IMPUREZAS DO BRANCO
BOITEMPO
MENINO ANTIGO
VERSIPROVA
VIOLA DE BOLSO
DISCURSO DE PRIMAVERA
ALGUMAS SOMBRAS

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