QUANDO NASCI, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forme. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. POLÍTICA LITERÁRIA A Manuel Bandeira O POETA municipal discute com o poeta estadual qual deles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso o poeta federal tira ouro do nariz. NO MEIO DO CAMINHO NO MEIO do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. BREJO DAS ALMAS é um dos municípios mineiros onde os cereais são cultivados em maior escala. Sua exportação é feita para os mercados de Montes Claros e Belo Horizonte. Há também grande exportação de toucinho, mamona e ovos. A lavoura de cana-de-açúcar tem-se desenvolvido bastante. Ultimamente, cogita-se da mudança do nome do município, que está cada vez mais próspero. Não se compreende mesmo que fique toda a vida como o primitivo: Brejo das Almas, que nada significa e nenhuma justificativa oferece. D'A Pátria, 6-VIII-1931 SEGREDO A POESIA é incomunicável. Fique torto no seu canto. Não ame. Ouço dizer que há tiroteio ao alcance do nosso corpo. É a revolução? o amor? Não diga nada. Tudo é possível, só eu impossível. O mar transborda de peixes. Há homens que andam no mar como se andassem na rua. Não conte. Suponha que um anjo de fogo varresse a face da terra e os homens sacrificados pedisse, perdão. Não peça. SENTIMENTO DO MUNDO TENHO apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, _humildemente vos peço que me perdoeis Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais que a noite CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO ALGUNS anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa… Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! JOSÉ JOSÉ E AGORA, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca ,_sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais, José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse se valsa vienese se você dormisse, se você cansasse, se você morresse… você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? A ROSA DO POVO NÃO RIMAREI a palavra sono com a incorrespondente palavra outono. Rimarei com a palavra carne ou qualquer outra, que todas me convêm. As palavras não nascem amarradas, elas saltam, se beijam, se dissolvem, no céu livre por vezes um desenho, são puras, largas, autênticas, indevassáveis. Uma pedra no meio do caminho ou apenas um rastro, não importa. Estes poetas são meus. De todo orgulho, de toda a precisão se incorporaram ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo. Que Neruda me dê sua gravata chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski. São todos meus irmãos, não são jornais nem deslizar de lancha entre camélias: é toda a minha vida que joguei. Estes poemas são meus. É minha terra e é ainda mais do que ela. É qualquer homem ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna em qualquer estalagem praça. É a lanterna em qualquer estalagem, se ainda as há. - Há mortos? há mercados? há doenças? É tido meu. Ser explosivo, sem fronteira, por que falsa mesquinhez me rasgaria? Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes [ rugas. O beijo ainda é sinal, perdido embora, da ausência de comércio, boiando em tempos sujos. Poeta do finito e da matéria, cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas, boca tão seca, mas ardor tão casto. Dar tudo pela presença do longínquos, sentir que há ecos, poucos, mas cristal, não rocha apenas, peixes circulando sob o navio que leva esta mensagem, e aves de bico longo conferindo sua derrota, e dois ou três faróis, últimos! esperança do mar negro. Essa viagem é imortal, e começá-la. Saber que há tudo. E mover-se em meio a milhões e milhões de formas raras, secretas, duras. Eis aí meu canto. Ele é tão baixo que sequer o escuta ouvido rente ao chão. Mas é tão alto que as pedras o absorvem. Está na mesa aberta em livros, cartas e remédios. Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua, o uniforme de colégio se transformam, são ondas de carinho te envolvendo. Como fugir ao mínimo objeto ou recusar-se ao grande? Os temas passam, eu sei que passarão, mas tu resistes, e cresces como o fogo, como casa, como orvalho entre dedos, na grama, que repousam. Já agora te sigo a toda parte, e te desejo e te perco, estou completo, me destino, me faço tão sublime, tão natural e cheio de segredos, tão firme, tão fiel… tal uma lâmina, o povo, meu poema, te atravessa. NOVOS POEMAS CANÇÃO AMIGA EU PREPARO uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam, e que fale como dói olhos. Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me vêem, eu vejo e saúdo velhos amigos. Eu distribuo um segrego como quem ama ou sorri. No jeito mais natural dois carinhos se procuram. Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. CLARO ENIGMA MEMÓRIA AMAR o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. BIBLIOGRAFIA Mário de Andrade. Aspectos da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Amérc-Edit. 1943 Otto maria Carpeau - Origens e fins - Rio de Janeiro, CEB 1943 Álvaro Lins, Jornal de Crítica, 5ª série - Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora- 1947 Sérgio Buarque de Holanda - Rebelião e convenção - I Diário Carioca, Rio de Janeiro, 1952 João Gaspar Simões "De aprendiz - a mestre do conto brasileiro in Letra e Artes, suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro 1951 Hélcio Martins - A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade - Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora - 1968 Antônio Houaiss - Drummond mais seis poetas e um problema RJ - Imago Editora 1976. FAZENDEIRO DO AR A VIDA PASSADA A LIMPO LIÇÕES DE COISAS A FALTA QUE AMA AS IMPUREZAS DO BRANCO BOITEMPO MENINO ANTIGO VERSIPROVA VIOLA DE BOLSO DISCURSO DE PRIMAVERA ALGUMAS SOMBRAS
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