MARIO DE ANDRADE PAULICEA DESVAIRADA "Inspiração" "Onde até na força do verão havia tempestades de ventos e frios de crudelíssimos inverno." Fr. Luís de Souza São Paulo! comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegância sutis sem escândalos, sem ciúmes... Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... São Paulo! comoção de minha vida... Galicismo a berrar nos desertos da América. "Paisagem n. 1" Minhas Londres das neblinas finas! Plenos verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas. Há neve de perfume no ar. Faz frio, muito frio... E a ironia das pernas das costureirinhas parecidas com bailarinas... O vento é como uma navalha nas mãos dum espanhol. Arlequinal!... Há duas horas queimou Sol. Daqui a duas horas queima Sol. Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos, um tralalá... A guarda- cívica! Prisão! Necessidade a prisão para que haja civilização? Meu coração sente-se muito triste... Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas dialoga um lamento com o vento... Meu coração sente-se muito alegre! Este friozinho arrebitado dá uma vontade de sorrir! E sigo. E vou sentindo, à inquieta alacridade da invernia, como um gosto de lágrimas na boca... "Ode ao Burguês" Eu insulto o burguês! O burguês- níquel, o burguês-burguês! A digestão bem feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros! que vivem dentro de muros sem pulos; e gemem sangues de alguns milreis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam o "Printemps" com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi! Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! "- Ai, filha, que tedarei pelos teus anos? - Um colar... - Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome! Come! Come-te a ti mesmo, oh! Gelatina pasma! Oh! Purê de batatas morais! Oh! Cabelos nas ventas! Oh! Carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódios vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Eu! Fora o bom burguês!... "Paisagem n. 4" Os caminhões rodando, as carroças rodando, rápidas as ruas se desenrolando, rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos... E o largo coro de ouro das sacas de café!... Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway... Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!... As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!... Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!... Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados... Oh! as indiferenças maternais!... Os caminhões rodando, as carroças rodando, rápidas as ruas se desenrolando, rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos... E o largo coro de ouro das sacas de café!... Lutar! A vitoria de todos os sozinhos!... As bandeiras e os clarins dos armazéns abarrotados... Hostilizar!... Mas, as ventaneiras dos braços cruzados¡... E a coroação com os próprios dedos! Mutismos presidenciais, para trás! Ponhamos os (Victória!) colares de presas inimigas! Erguirlandemo-nos de café-cereja! Taratá e o pean de escaárnio para o mundo! Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!! LOSANGO CÁQUI "Cabo Machado" Cabo Machado é cor de jambo, Pequenino que nem todo brasileiro que se preza. Cabo Machado é moço bem bonito. É como si a madrugada andasse na minha frente. Entreabre a boca encarnada num sorriso perpétuo Adonde alumia o Sol de oiro dos dentes Obturados com um luxo oriental. Cabo Machado marchando É muito pouco marcial. Cabo Machado é dançarino, sincopado, Marcha vem-cá-mulata. Cabo Machado traz a cabeça levantada Olhar dengoso pros lados. Segue todo rico de joias olhares quebrados Que se enrabicham pelo posto dele E pela cor-de-jambo. Cabo Machado é delicado gentil. Educação francesa mesureira. Cabo Machado é doce que nem mel E polido que nem manga-rosa. Cabo Machado é bem o representante duma terra Cuja Constituição proíbe as guerras de conquista E recomenda cuidadosamente o arbitramento. Só não bulam com ele! Mais amor menos confiança! Cabo Machado toma um jeito de rasteira... Mas traz unhas bem tratadas Mãos transparentes frias, Não rejeita o bom-tom do pó-de-arroz. Se vê bem que prefere o arbitramento. E tudo acaba em dança! Por isso Cabo Machado anda maxixe. Cabo Machado... bandeira nacional! "TOADA DA ESQUINA" Pouco antes de meio-dia Senti que vinha. Esperei. Veio. Passou. Foi assim Como si a Lua passasse Por essa picada estranha Que viajo desde nascer. A redoma toda verde Do meu peito escureceu. Noite de maio bondoso. Lá vai a Lua passando. Há mesmo essa refração Que me bota no pescoço O cache-col da Via-Láctea E a Lua na minha mão. Mas quando quero gozar O belo táctil do luar, E passo a mão sobre os dedos... Tenho de desiludir-me. Foi mentira dos sentidos, Foi o orvalho. Nada mais. Veio. Passou. Foi assim Como si a Lua... Suspiro talqual na infância. - Que queres, Mário? - Mamãi, Quero a Lua! - Hoje é impossível, Já vai longe. Tem paciência, Te dou a Lua amanhã. E espero. Esperas... Espera... - Pinhões! CLAN DO JABOTÍ O poeta come amendoim A Carlos Drummond de Andrade (1924)- Noites pesadas de cheiros e calores amontoados... Foi o Sol que por todo o sítio imenso do Brasil Andou marcando de moreno os brasileiros. Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos... Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos. Os Caramurus conspiram na sombra das mangueira ovais. Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país... Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos, Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu... Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã. A gente inda não sabia se governar... Progredir, progredimos um tiquinho Que o progresso também é uma fatalidade... Será o que Nosso Senhor quiser!... Estou com desejos de desastres... Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas Se encostando na cangerana dos batentes... Tenho desejos de violas e solidões sem sentido Tenho desejos de gemer e de morrer. Brasil... Mastigado na gostosura do amendoim... Falado numa língua curumim De palavras incertas num remeleixo melado melancólico... Saem lentas frescas trituradas pelo meus dentes bons... Molham meus beiços que dão beijos alastrados E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas... Brasil amado não porque seja minha pátria, Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso, O gosto dos meus descansos , O balanço das minhas cantigas amores e danças. Brasil que eu sou porque é minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento muito pachorrento, Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir "TOADA DO PAI-DO MATO" A moça Camalalô Foi no mato colher fruta. A manhã fresca de orvalho Era quase noturna. - Ah... Era quase noturna... Num galho de tarumã Estava um homem cantando. A moça sai do caminho Pra escutar o canto. - Ah... Ela escuta o canto... Enganada pelo escuro Camalalô fala pro homem: Ariti, me dá uma fruta Que eu estou com fome. - Ah... Estava com fome... O homem rindo secundou: - Zuimaalúti se engana, Pensa que sou ariti? Eu sou o Pai-do-Mato. Era o Pai-do-Mato! DOIS POEMAS ACREANOS a Ronald de Carvalho I DESCOBRIMENTO Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De sopetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito [longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu. II "ACALANTO DO SERINGUEIRO" Seringueiro brasileiro, Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. Ponteando o amor eu forcejo Pra cantar uma cantiga Que faça você dormir. Que dificuldade enorme! Quero cantar e não posso, Quero sentir e não sinto A palavra brasileira Que faça você dormir... Seringueiro, dorme... Como será a escureza Desse mato-virgem do Acre? Como serão os aromas A macieza ou a aspereza Desse chão que é também meu? Que miséria! Eu não escuto A nota do uirapuru!... Tenho de ver por tabela, Sentir pelo que me contam, Você, seringueiro do Acre, Brasileiro que nem eu. Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. Seringueiro, seringueiro, Queira enxergar você... Apalpar você dormindo, Mansamente, não se assuste, Afastando esse cabelo Que escorreu na sua testa. Alguma coisas eu sei... Troncudo você não é. Baixinho, desmerecido, Pálido, Nossa Senhora! Parece que nem tem sangue. Porém cabra resistente Está ali. Sei que não é Bonito nem elegante... Macambúzio, pouca fala,. Não boxa, não veste roupa De palm-beach... Enfim não faz Um desperdício de coisas Que dão conforto e alegria. Mas porém é brasileiro, Brasileiro que nem eu... Fomos nós dois que botamos Pra fora Pedro II... Somos nós dois que devemos Até os olhos da cara Pra esses banqueiros de Londres... Trabalhar nós trabalhamos Porém pra comprar as pérolas Do pescocinho da moça Do deputado Fulano. Companheiro, dorme! Porém nunca nos olhamos Nem ouvimos e nem nunca Nos ouviremos jamais... Não sabemos nada um do outro, Não nos veremos jamais! Seringueiro, eu não sei nada! E no entanto estou rodeado Dum despotismo de livros, Estes mumbavas que vivem Chupitando vagarentos O meu dinheiro o meu sangue E não dão gosto de amor... Me sinto bem solitário No mutirão de sabença Da minha casa, amolado Por tantos livros geniais, "Sagrados" como se diz... E não sinto os meus patrícios! E não sinto os meus gaúchos! Seringueiro dorme ... E não sinto os seringueiros Que amo de amor infeliz... Nem você pode pensar Que algum outro brasileiro Que seja poeta no sul Ande se preocupando Com o seringueiro dormindo, Desejando pro que dorme O bem da felicidade... Essas coisas pra você Devem ser indiferentes, Duma indiferença enorme... Porém eu sou seu amigo E quero ver si consigo Não passar na sua vida Numa indiferença enorme. Meu desejo e pensamento (...numa indiferença enorme...) Ronda sob as seringueiras (...numa indiferença enorme...) Num amor-de-amigo enorme... Seringueiro, dorme! Num amor-de-amigo enorme Brasileiro, dorme! Brasileiro, dorme. Num amor-de-amigo enorme Brasileiro, dorme. Brasileiro, dorme, Brasileiro... dorme... Brasileiro... dorme... REMATE DE MALES "Quid, homo, ineptam sequeris laetitiam." (sec. XI) "Eu sou trezentos..." (7-VI-1929) Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesma sem repouso, Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo. TEMPO DA MARIA (1926) A Dona Eugenia Alvaro Moreyra "MODA DO CORAJOSO" Maria dos meus pecados... Maria, viola de amor... Já sei que não tem propósito Gostar de donas casadas, Mas quem que pode com o peito! Amar não é desrespeito, Meu amor terá seu fim. Maria há-de ter um fim. Quem sofre sou eu, que importa Pros outros meu sofrimentos? Já estou curando a ferida. Se dando tempo pro tempo Toda paixão é esquecida. Maria será esquecida. Que bonita que ela é!... Não Me esqueço dela um momento! Porém não dou cinco meses, Acabarão as fraquezas E a paixão será arquivada. Maria será arquivada. Por enquanto isso é impossível. O meu corpo encasquetou De não gostar sinão duma... Pois, pra não fazer feiúra, Meu espírito sublima O fogo devorador. Faz da paixão uma prima, Faz do desejo um bordão, E encabulado ponteia A malvadeza do amor. Maria, viola de amor!... POEMAS DA AMIGA (1929-1930) a Jorge de Lima I A tarde se deitava nos meus olhos E a fuga da hora me entregava abril, Um sabor familiar de até-logo criava Um ar, não sei por quê, te percebi. Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança. Estavas longe, doce amiga; e só vi no perfil da cidade O arcanjo forte do arranha-céu cor-de-rosa Mexendo asas azuis dentro da tarde. II Si acaso a gente se beijasse uma vez só... Ontem você estava tão linda Que o meu corpo chegou. Sei que era um riacho e duas horas de sede, Me debrucei, não bebi. Mas estou até agora desse jeito, Olhando quatro ou cinco borboletas amarelas, Dessas comuns, brincabrincando no ar. Sinto um rumor... VIII Gosto de estar a teu lado, Sem brilho. Tua presença é uma carne de peixe, De resistência mansa e dum branco Ecoando azuis profundos. Eu tenho liberdade em ti Anoiteço feito um bairro Sem brilho algum. Estamos no interior duma asa Que fechou A COSTELA DO GRÃO CÃO "Lundu do escritor difícil" (1928) Eu sou um escritor difícil Que a muita gente enquisila, Porém essa culpa é fácil De se acabar duma vez: É só tirar a cortina Que entra luz nesta escurez. Cortina de brim caipora, Com teia caranguejeira E enfeite ruim de caipira, Fale fala brasileira Que você enxerga bonito Tanta luz nesta capoeira Tal-e-qual numa gupiara. Misturo tudo num saco, Mas gaúcho maranhense Que para no Mato Grosso, Bate esta angu de caroço Ver sopa de caruru; A vida é mesmo um buraco, Bobo é quem não é tatu! Eu sou um escritor difícil, Porém culpa de quem é!... Todo difícil é fácil, Abasta a gente saber. Bagé, piché, chué, ôh "xavié", De tão fácil virou fóssil, O difícil é aprender! Virtude de urubutinga De enxergar tudo de longe! Não carece vestir tanga Pra penetrar meu cassange! Você sabe o francês "singe" Mas não sabe o que é guariba? - Pois é macaco, seu mano, Que só sabe o que é da estranja. "Momento" (1929) Ö mundo que se inunda claro em vultos roxos No caos profundo em que a tristura Tange mansinho os ventos aos mulambos. A gente escapa da vontade. Se sente prazeres futuros, Chegar em casa, Reconhecer-se naturezas-mortas... Ôh, que pra lá da serra caxingam os dinossauros! Em breve a noite abrirá os corpos, As embaúbas vão se refazer... A gente escapa da vontade. Os seres mancham apenas a luz dos olhares, Se sobrevoam feito músicas escuras. E a vida, como viola desonesta, Viola a morte do ardor, e se dedilha... Fraca. O CARRO DA MISÉRIA (24-XII-1930, 11-X-1932 e 26XII-1943) a Carlos Lacerda I O que vêm fazer pelos meus olhos tantos barcos Lenços rompendo adeuses presentinhos Charangas na terra-roxa das estações um grito Um grito não um gruto Que me faz esquecer a miséria do mundo pão pão... O que que vem fazer na minha boca um beijo A mulher da Bolívia agarrando Um penacho de viúvas restritas Restritas não restrutas Que o papagalo repassa e põe na vida... Ah... caminhos caminhos caminhos errados de séculos... Me sinto o Pai Tietê. Dos meus sovacos Saem fantasmas bonitões pelos caminhos Penetrando o esplendor falso da América. Dei-vos minas de ouro vós me dais mineiros! Glória a Cícero nas vendinhas alterosas Com a penugem dos pensamentos sutis Feito ninho de guaxe O passado atrapalha os meus caminhos Não sou daqui venho de outros destinos Não sou mais eu nunca fui eu decerto Aos pedaços me vim - eu caio! - aos pedaços disperso Projetado em vitrais nos joelhos nas caiçaras Nos Pirineus em pororoca prodigiosa Rompe a consciência nítida: EU TUDOAMO Ora vengan los zabumbas Tudoamarei! Morena eu te tudoamo! Destino pulha alma que bem cantaste Maxixa agora samba o coco E te enlambuza na miséria nacionar "Arraiada "Manhãzinha a italiana vem na praia do ribeirão. Vem derreada e com a sombra do sono no canto dos olhos. Põe a trouxa de roupas na lapa E erguida fica um momentinho assim no sol. A narina dela mexe que nem peito de rolinha. Mastiga a boca sem lavar Que tem um visgo de banana e de café. Respira. Afinal se espreguiça Erguendo pros anjos o colo criador. "Tempo das águas" O gado estava amoitando na capoeira. Agora é a gupiara agachada no lombo do morro Vazia que não tem mais fim. De repente faz cócega na cara da gente A mão de chuva do bento. Tempo perdido se afobar, Ela já vem na cola do liburno. Olhe a folhinha seca. Salta que salta ressabiada, corcoveia, Desembestou que nem potranca chucra pasto fora. Você quase nem tem tempo de vestir a caba boa E despenca a chuva de Deus. O espaço num átimo se enche de ar leviano E a água lava até a espinha da gente E encrespa a crina do animal. Que gostosura! Você rejeita o forde da fazenda na porteira E continua tchoqe-tchoque na tijuqueira peguenta da estrada. Em casa, No brim novo com cheiro de ribeirão Você deita na rede da varanda, Chupita o traço da abrideira... E se conversa. E se conversa sobre a baixa do café. II Ai momentos de físico amor, Ai reentrâncias de corpo... Meus lábios são que nem destroços Que o mar acalanta em sossego. "Poemas da Negra" I Não sei por que espírito antigo Ficamos assim impossíveis... A Lua chapeia os mangues Donde sai um favor de silêncio E de maré. És uma sombra que apalpo Que nem cortejo de castas rainhas. Meus olhos vadiam nas lágrimas. Te vejo coberta de estrelas, Coberta de estrelas, Meu amor! Tua calma agrava o silêncio dos mangues. A luz do candieiro te aprova, E... não sou eu, é a luz aninhada em teu corpo Que ao som dos coqueiros do vento Farfalha do ar os adjetivos. "Lendas das mulheres de peito chato" Macunaíma, Maria, Viajando por essas terras Com os dois manos, encontrou Uma cunhã tão formosa Que era um pedaço de dia Na noite do mato-virgem. Macunaíma, Maria, Gostou da moça bonita. Porém ela era casada, E jamais não procedia Que nem as donas de agora, Que vivem mais pelas ruas Do que na casa em que moram; Vivia só pro marido E os filhos do seu amor, Fiava, tecia o fio, Pescava, e março chegado Mexendo o corpo gostoso, Ela fazia a colheita Do milho da beira-rio. Que bonita que ela é!... Bom. Macunaíma, Maria, Não pôde seguir, ficou. Que havia de fazer! Amar não é desrespeito, Falou pra ela e ela se riu. Então lhe subiu o peito A escureza da paixão, E o apaixonado cegou. Pegou nela mas a moça Possuía essa grande força Que é a força de querer bem: Forcejava que mais forceja, Até deu nele! Não doeu. Macunaíma, Maria, Largou da moça. Oh, meu Deus! Como estava contrariado! Pois um moço que ama então Não tem direito de amar! Tem, Maria, tem direito! Te juro que tem direito! Macunaíma fez bem! O amor dele era tão nobre Ver o do outro que casou. Casar ;e uma circunstância Que se dá, que não se dá Porém amar é a constância, Porta num, se abanca, e o pobre Tem que lha matar a fome, Dar cama pra ele dormir. Macunaíma, Maria, Era como eu brasileiro, E em todas as moradias Que se erguem no chão quentinho Do nosso imenso Brasil, Não tem uma que não tenha Um quarto-de-hóspede pronto! Pobre do Macunaíma, Não tem culpa de penar! Foi brasileiro, amor veio, Ele teve que hospedar! - Eu te amo, (que ele falava) Moça linda! Você tem Esse risco de urucum Na beira do olhar somente Pra não ver quem te quer bem! Olhos de jaboticaba! Colinho de cujubim!... Te adoro como se adora Com doçura e com paixão! Maria... vamos embora! (Que ele falava pra moça) eu quero você pra mim! Bom. O coitado, Maria, De tanta contrariedade, Pôs reparo que é impossível Se ser feliz neste mundo,. Em plena infelicidade... Se vingou. Tinha ali perto Dois cachos de bananeira. Cortou deles... você sabe, Os mangarás pendurados, Que de tão arroxeados Têm mesmo a cor da paixão. Lá no Norte chamam isso De "filhotes de banana", E a bananeira dá fruta Uma vez, não dá mais não... Macunaíma, Maria, Pegou a moça arrancou Os peitinhos emproados Do colo de cujubim, Pendurou no lugar deles os filhotes da paixão. Por isso essa moça dura, De quem nós todos nascemos, Tem o colo que nem de homem, De achatado que ficou. E hoje as donas são assim... Adianta a lenda que a moça Ficou feia... Não sei não... "Minha viola bonita" Minha viola bonita, Bonita viola minha, Cresci, cresceste comigo Nas arábias. Minha viola namorada, Namorada viola minha, Cantei, cantaste comigo Em Granada. Minha viola ferida, Ferida viola minha, O amor fugiu para leste Na borrasca. Minha viola quebrada, Raiva, anseios, lutas, vida, Miséria, tudo passou-se Em São Paulo. (In Lira paulistana) "Meditação sobre o Tietê "(...) Meu rico, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde queres levar?... Por que me proíbes assim praias e mar, por que Me impedes a fama das tempestades do Atlântico E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar? Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra, Me induzindo com tua insistência turrona paulista Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!... Já nada me amarga mais a recusa da vitória Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim. Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante, E fui por tuas águas levado, A me reconciliar com a dor humana pertinaz, E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens. (...) (In Lira paulistana) "...os que esperam, os que perdem" ...os que esperam, os que perdem o motivo, os que emudecem, os que ignoram, os que ocultam a dor, os que desfalecem os que continuam, os que duvidam... Coração, Afirma, afirma e te abrasa Pelas milícias do não! (In Lira paulistana) "Agora eu quero cantar" Agora eu quero cantar Uma história muito triste Que nunca ninguém cantou, A triste história de Pedro, Que acabou qual principiou. Não houve acalanto. Apenas Um guincho fraco no quarto Alugado. O pai falou, Enquanto a mãe se limpava: - É Pedro. E Pedro ficou. Ela tinha o que fazer, Ele inda mais, e outro nome Ali ninguém procurou, Não pensaram e Alcebíades, Floriscópio, Ciro, Adrasto, Que-dê tempo pra inventar! - É Pedro. E Pedro ficou. Pedrinho engatinhou logo Mas muito tarde falou; Ninguém falava com ele, Quando chorava era surra E aprendeu a emudecer. Falou tarde, brincou pouco, Em breve a mãe ajudo. Nesse trabalho insuspeito Passou o dia, e nem bem A noite escura chegou, Como única resposta Um sono bruto o prostrou. Por trás do quarto alugado Tinha uma serra muito alta Que Pedro nunca notou Mas num dia desses, não Se sabe por quê, Pedrinho Para a serra se voltou: - Havia de ter, decerto, Uma vida bem mais linda Por trás da serra, pensou. (In Lira paulistana) Eu nem sei si * vale a pena Cantar São Paulo na lida, Só gente muito iludida Limpa o gosto e assopra a avena, Esta angústia não serena, Muita fome pouco pão, Eu só vejo na função Miséria, dolo, ferida, Isso é vida? São glórias desta cidade Ver a arte contando história, A religião sem memória De quem foi Cristo em verdade, Os chefes nossa amizade, Os estudantes sem textos, Jornalismo no cabresto, Todos cantando vitória, Isso é glória? .................................... Pois nada vale a verdade, Ela mesma está vendida, A honra é uma suicida, Nuvem a felicidade, E entre rosas a cidade, Muito concha e relambória, Sem paz, sem amor, sem glória, Se diz terra progredida, Eu pergunto: Isso é vida?
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