OS DESVALIDOS
Irremediáveis são as mazelas e infortúnios vividos pelos personagens de os Desvalidos, segundo romance de Francisco Dantas (Companhia das Letras, 222 páginas, 1993). Eles cumprem uma sina que os iguala, "conforme o quilate de cada um. "O título já contém o prefixo de negação de uma vida digna, pois "desvalidos" são aqueles que não têm valimento, ou que não têm valia: uns pobres desgraçados. Assim é Coriolano, que tem no nome a metáfora de sua condição miserável de vida, condição esta animalizada - lembrando o couro do animal que fornece a matéria-prima para o seu mísero sustento na confecção de tamancos. Ele sempre se perguntava quem fora o culpado do trompaço que entortava sua vida tão bem encaminhada. Seria uma sina? Sina. Talvez seja essa a palavra-chave do romance. Pois não cumprem um destino melhor outros desvalidos. O caso de tio Filipe é exemplar. O nome revela sua vocação para "amigos de cavalos". Sempre vitoriosos em suas andanças, acaba também sendo arrastado para o infortúnio, cumprindo um destino rumo à anulação. Ele é casado com Maria Melona, uma espécie de Diadorim que se traveste em homem para entrar no bando de Lampião e, com isso, tentar encontrar também sua identificação feminina. Até mesmo os personagens históricos despencam desse precipício, como é o caso de Lampião. Quando o narrador anuncia: "Lampiãããão Morreeeeeu!…", no início do romance, anuncia também o fim de uma época marcada pela violência e desatinos.Para esta galeria de pobres-diabos, o autor oferece uma "vidinha caipora". Para cada um a vida revela um punhado de desgraça sem a possibilidade de um futuro promissor. "É a Sina que iguala todos nós". ou "Pose, minha gente, quem tira e bota é o Zinabre do dinheiro! O resto é conversa fiada", no dizer angustiado do próprio Coriolano. Regionalismo Francisco Dantas estreou na literatura em 1991 com o romance Coivara de memória. Dois anos depois surpreendeu com estes Os Desvalidos, em que retoma a tradição do romance regional do Nordeste. Optou por uma literatura realista, pretendendo testemunhar o mundo cotidiano, informar sobre hábitos e tradições populares da região nordestina e principalmente falar dos problemas humanos sociais mais agudos.Como diz Alfredo Bosi, na orelha do livro "esculpir a figura da dignidade na matéria do sertanejo nordestino" é o objetivo do narrador. Nos rastros de Guimarães Rosa, "a sua prosa alcança o equilíbrio árduo entre a oralidade da tradição, cujos veios não cessam perseguir, e uma dicção empenhadamente literária que modula o fraseado clássico até os confins da maneira". O romance, escrito com os termos próprios da região do Nordeste vai se desenvolvendo com cenas fortes, mostrando a vida trágica e miserável da região. É pertinente associar Os desvalidos com Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Como este, apresenta uma estrutura moderna, dominada pela força da estória fascinante. O trabalho apurado com a linguagem, o uso do discurso indireto livre, a queda da linearidade do enredo e a capacidade de entrar na psicologia do rústico são algumas das peculiaridades que aprisionam o leitor que, sem escolha, também cumpre uma sina: se embevecer, exercitar sua reflexão e apurar sua sensibilidade, o que resulta numa tarefa agradável. É ler e conferir. Professora Maria Lúcia Vieira |
AS ACADEMIAS DE SIÃO
Durante muito tempo foram os textos de Machado de Assis tema de acalorados debates entre estudantes e pesquisadores. Na atualidade, porém, parece que nada mudou. Alfredo Bosi em "a história concisa da Literatura Brasileira, p. 194, Cultrix, 1988" evidencia mais de cinco dezenas de trabalhos, cujo enfoque principal seja abordar o pensamento machadiano. Outros tantos trabalhos ainda estão por vir, sem, contudo, esgotar o assunto. E é justamente nesse ambiente que a literatura se compõe e se completa. Em "As Academias de Sião", Machado objetiva pôr a descoberto a problemática do comportamento humano. Ao enfocar a troca de identidade entre a princesa Kinara e o rei Kalapanko, o autor vem delinear a cruel ambição do indivíduo pelo poder. Se por um lado a morte é termo inevitável, a perfídia caracterizada a verdadeira ruptura de lucidez. É nesse plano idealizado pelo criador de Capitu que vão emergir, no pano das idéias, prováveis sentimentos sob os quais o mundo é regido. Kinara, em corpo de rei, transcende as emoções humanas e descobre que mesmo aqueles a quem se eleva com valores de notoriedade, sugerem controvérsias quando o assunto é virtudes. Os intelectuais surgem, então, com o triunfo de serem "o arroz da ciência e a luminária do mudo". Machado, com extrema sutileza, ao metamorfosear corpo e alma, destrona, - segundo Baktin - valores ditos sociais para entronizar o que realmente vai no pensamento humano: a hipocrisia, a mentira, a injúria, a falsidade, a traição. Ora, meter-se em terreno dessa natureza requer sobriedade e habilidade, características por demais intrínsecas em Machado. Captar o mundo sob a ótica centrada no descompasso das emoções é tarefa que exige sensibilidade. Quem é o Homem? Estúpido? Arrogante? Ou camelo modesto? O que realmente se pensa do próximo? Diz-se o que pensa ou pensa-se o que se diz? Sob estas questões vive a humanidade. Sozinho o homem é um gentil cordeiro: na massa, um lobo voraz entre lobos vorazes. Se U-Tong denuncia a todos como sendo pulhas do reino, também ele o é, porque esquece que está igualmente inserido no contexto social. E como entender das transformações que ocorrem no coração daqueles que, na primeira oportunidade de exercerem o poder, se tornam mandatários? Machado mistura ficção e realidade num fascinante jogo de idéias ao trazer a figura de Kalapanko às vistas do leitor. São os personagens de Machado a legitimidade das contradições humanas. Basta que se deixe penetrar à alma as loucuras do jovem rei, as ambições da concubina e a falsidade dos intelectuais, para que daí resulte, camuflado no seio de cada indivíduo, um universo de pensamentos tão heterogêneo quanto o são as estrelas. Assim se compõem os textos de Machado e se apresentam sob o diabólico encontro de idéias, de vozes. Se inserem no âmbito das reflexões a formar, no íntimo do leitor, um misto de mesquinhez e admiração. Machado, com bateia rasa, garimpa a alma e brinca com as emoções. Ler Machado é penetrar o mundo tenebroso das contradições humanas. Sebastião Lourenço dos Santos |
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